quinta-feira, 22 de dezembro de 2011
2011
Que ano…
Tudo o que eu queria quando me afastei do teatro no final de 2010 era um pouco de sossego pra resolver uma penca de problemas aqui em casa.
As vezes me pergunto porque fui dar ouvidos a minha esposa e ao Lucas Pimenta pra fazer um blog.
Fiz.
E nunca me diverti tanto.
2011 começou com o pé na porta da minha pacata vidinha suburbana. Culpa do Wellington Srbek. Janeiro nem tinha chegado na metade e eu já ia fazer um gibi pra Editora Nemo.
Não sei exatamente se já deixei claro o que isso representou pra mim. Eu sou um leitor compulsivo de quadrinhos. Aprendi a ler com eles quando tinha apenas 6 anos. E lá se vão 33 anos e milhares e milhares de gibis.
Meu primeiro sonho foi ser desenhista de quadrinhos. Sou um mal desenhista mas, ao que tudo indica, tenho jeito pra escrever.
E não é todo dia que a gente consegue realizar um sonho de infância.
Mas 2011 também foi um ano pra estreitar amizades.
O Will, o Laudo, o maluco do Daniel Esteves, o Flavio Luiz, a galera do Quarto Mundo, o Gilmar, o Gustavo e, claro, o Wanderson, que aturou por meses minhas loucuras e apesar disso conseguiu manter a sanidade e o talento intactos pra desenhar Sonho de Uma Noite de Verão.
E também mais um monte de gente que conheci na estrada e por quem fiquei encantado, como o Aloisio de Castro, os gêmeos Magno e Marcelo Costa, o Kris Zullo, o Arnaud, o Rafael Química, o trio gaúcho Pax, Azeitona e Santolouco (talentosíssimos malucos e gente da melhor qualidade) e mais um monte de profissionais e leitores aos quais já peço desculpas antecipadas pela imperdoável indelicadeza por não cita-los nominalmente aqui. Culpa da minha memória de formiga sem antenas.
E o ano de 2011 também marcou a despedida da Livraria HQMix.
Calma, caso você tenha ficado fora no último mês, a HQMix não acabou. Apenas vai sair da Praça Roosevelt, no centro de São Paulo.
O que só aumenta minha admiração e amizade pelo Gual, pela Dani e pelo Floreal.
Mesmo com as incertezas que um processo de mudança desses causa, eles nunca deixaram a peteca cair. Devo a eles algumas das minhas melhores conversas durante o ano de 2011 e – sem qualquer sombra de dúvidas – minha eterna gratidão por toda a amizade e carinho que eles, incondicionalmente, sempre ofereceram a mim e a minha esposa (que continua toda parafusada).
E como não poderia deixar de ser, devo muito (mas muito mesmo) ao Lucas Pimenta, ao Sergio Barreto e ao Marcello Fontana. A amizade deles é um dos meus principais faróis. Graças a esses baianos (o Marcello diz que é mineiro, mas acho que é mentira) atravessei todo o ano de 2011, apesar dos buracos que peguei.
E tem também o Adalton, o Portilho e toda a turma do Quadro a Quadro. É uma delícia fazer parte dessa turma.
E para o ano que vem a lista só aumentará, tenho certeza.
De cara já posso contar que virá mais um volume da coleção Shakespeare em Quadrinhos, pela Nemo, e mais dois projetos bem bacanas em parceria com o Will.
E que venha 2012!
E a gente se encontra por aí…
Lillo – 22/12/2011
sexta-feira, 16 de dezembro de 2011
Sangue no chão e um cheiro podre no ar
Honra e vingança.
Boa parte da história moderna só existiu graças a força da honra e ao poder da vingança.
O restante foi construído sobre os escombros de seus contrários.
E as duas partes foram amarradas com a promessa divina do idílico paraíso ou da danação eterna.
E isso resume toda a história ocidental.
E também define nações.
A mais proeminente de nossa era – a estadunidense – é pródiga em exemplos de valor, ou ao menos soube vendê-los de maneira atraente às demais nações.
Não entrarei aqui na já repisada discussão sobre a imposição de ícones como forma de dominação cultural. Gente de muito maior valor já fez isso de forma bem mais competente¹. Não que discorde de uma boa parte da opinião deles ou a ignore, diga-se.
Mas quero falar de um daqueles ícones norte americanos que habitam a imaginação coletiva mundo afora. Um lugar em que qualquer guri de sete anos sabe que os fracos morrem cedo e só os fortes sobrevivem: o velho oeste americano.
Todos já assistimos a um bom filme de faroeste. A maior parte tem como referência os excelentes e deliciosos Bang Bang a Italiana imortalizados pela TV Record nos anos 80, onde O Dólar Furado (1965) seja talvez o maior expoente. Mas também existem verdadeiras obras primas do cinema. Filmes com tal requinte e sofisticação – e ainda assim tão intensos – que nada ficam devendo a clássicos como O Poderoso Chefão ou Laranja Mecânica (apenas para citar dois exemplos de gêneros bastante distintos). Estou falando de filmes como Era Uma Vez no Oeste, Meu Ódio Será sua Herança ou Os Imperdoáveis.
São filmes onde honra e vingança são o ponto central do roteiro e ajudaram a consolidar a imagem do velho oeste em todo o mundo, influenciando – além do próprio cinema – a literatura, a música, a moda e, claro, os quadrinhos.
Do popular italiano Tex ao seu sofisticado conterrâneo Ken Parker, passando pelas milhares de histórias norte americanas das décadas de 40 e 50 e até pelo brasileiríssimo Chet, não faltam bons exemplos de quadrinhos sobre aquela terra de bravos.
Mas de vez em quando aparece um daqueles gibis que te fazem prender a respiração e suar frio, à espera de quem sacará primeiro a sua Colt…
Oeste Vermelho não é um bom gibi.
E antes que vocês estranhem, já que só resenho o que gosto, explico: Oeste Vermelho não é um bom gibi porque não é simplesmente um gibi.
Oeste Vermelho, dos gêmeos Magno e Marcelo Costa (Devir Livraria – 88 páginas – R$ 34,50 ) é um trago de uísque batizado, a anágua à mostra de uma prostituta barata, o olhar assustado de um repórter recém chegado de San Francisco ou Chicago…
Oeste Vermelho tem cheiro de pólvora.
Fazer um gibi de Faroeste, um gênero tão explorado e, como já disse, tão arraigado em nosso imaginário não é tarefa fácil.
E os gêmeos sabiam disso com certeza…
Do contrário, como explicar que os protagonistas de Oeste Vermelho sejam basicamente gatos e ratos?
Uma sacada assim – ainda que não faltem precedentes nos quadrinhos (e entre eles o magnífico Maus) – funciona como um farol numa tempestade em alto mar.
O que não adiantaria de absolutamente nada se Oeste Vermelho não fosse uma baita duma história.
Vamos aos fatos: ratos são nojentos, gatos são peludinhos e macios; ratos trazem a peste, gatos trazem seus corpos pra gente ficar passando a mão; e gatos caçam ratos, não nos esqueçamos…
Mas no mundo dos Cartoons a situação é inversa. Talvez sejam aqueles lindos e pedintes olhos de contas dos roedores, imbatíveis se comparados aos dissimulados olhos dos gatos. Talvez seja a incontestável inferioridade física dos ratos que nos desperta o velho sentimento de torcer pelo mais fraco.
Ou talvez a culpa seja mesmo do Mickey…
O fato é que nos afeiçoamos aos ratos, tanto nos desenhos animados quanto nos quadrinhos.
O que não quer dizer necessariamente que Oeste Vermelho seja uma história bonitinha com ratinhos e gatinhos
Aliás, Oeste Vermelho pode ser tudo, menos uma “história bonitinha”…
Não espere novidades. Se você é realmente um fã de faroeste, com certeza já viu a história antes: um fazendeiro pacato, que tem uma antiga rusga com o chefão da cidade, é publicamente desacreditado quando tenta alertar a todos sobre o risco iminente de uma invasão de bandoleiros assassinos.
O resto da história será a desgraça, redenção e vingança de nosso herói, que não descansará enquanto o último inimigo não estiver com uma bala na cabeça.
Absolutamente nada de novo.
Mas o jeito como esses dois caras contam a história…
Primeiro: sobram referências.
E aqui estou falando de referências de verdade, não de plágio ou clichês. Da vestimenta da personagem principal a aparência dos estabelecimentos, o que não faltam são homenagens à extensa filmografia do gênero.
Mas a referência mais genial é exatamente a mais sutil. Os irmãos Costa estruturaram Oeste Vermelho de uma forma inusitada. Sai a ação vertiginosa que permeia boa parte da produção de quadrinhos atual e entram longos e lentos planos, apagam-se as explosões e a pirotecnia habitual e entram os detalhes, o explicito cede lugar ao implícito, criando uma atmosfera desoladora.
Não reconhece o clima? Então procure pelos filmes Por Um Punhado de Dólares, Três Homens em Conflito ou Era uma vez no Oeste, e conheça um dos mais geniais diretores de todos os tempos: Sergio Leone (1929 – 1969), o autor de alguns dos melhores filmes do gênero em todos os tempos.
Uma justa homenagem que confere ao gibi um ritmo narrativo excepcional.
Segundo: roteiro e arte não possuem concessões.
Esqueçam os meninos, Oeste Vermelho é um gibi pra homens – ou pra mulheres, vocês entenderam…
Nada de cowboy de sorriso de diamante, nada de escapes cômicos, nada – absolutamente nada – de concessões. Se é pra ser mau, a crueldade é verdadeira. Se é pra se vingar, não tem perdão.
E se não bastasse tudo isso, a impressão que se tem ao terminar a leitura de Oeste Vermelho é a de estarmos diante dum gibi sério, onde o carinho e esmero com que foi feito simplesmente são visíveis em cada quadro, em cada diálogo.
Quase se dá pra ouvir uma gaita tocando no fundo…
¹ Super Homem e seus Amigos do Peito – Ariel Dorfman e Manuel Jofre – Editora Paz e Terra (mas facilmente encontrado nos sebos também numa edição do Círculo do Livro).
domingo, 4 de dezembro de 2011
Bang!
Bang!
Mas a maior parte dos autores prefere Blam!
Porém Bang! é mais universal, é o tiro clássico. Com outro Bang! vira faroeste, sozinho é morte certa.
E sempre existe um corpo, quando não vários.
E em Minas Gerais eles pareciam brotar dos estandes do FIQ.
3 Tiros e 2 Otários
A habilidade de Daniel Esteves com diálogos já é bastante conhecida. O trabalho que ele desenvolve na Nanquim Descartável já lhe rendeu vários prêmios e é sucesso de público e crítica.
Aliado a arte sempre competente de Caio Majado (Orixás – do Orum ao Ayê), já era de se esperar algo bom do lançamento que os dois prepararam para o FIQ.
O que não se esperava era o insano ritmo de 3 Tiros e 2 Otários.
A premissa é bastante simples: dois amigos trancados num quarto, um tiro e o corpo de uma garota.
Quem matou? Quem não matou? Numa situação extrema, como confiar em seu amigo? A trepada valeu a pena depois de tanto sangue?
3 Tiros e 2 Otários imprime um ritmo vertiginoso a um diálogo que não deixa por menos. Regado a palavrões, o conteúdo de 3 Tiros justifica o aviso impresso na capa: não recomendável para pessoas sensíveis.
Talvez não seja totalmente verdade.
Pessoas sensíveis podem sim ler 3 Tiros, mas provavelmente verão seu castelo de cartas, onde habitam princesas indefesas e nobres guerreiros, onde o amor tudo pode e tudo redime, desabar com a velocidade de uma bala.
Matinê
Matinê, dos gêmeos Marcelo & Magno Costa, já começa bem logo pela capa – um convite para qualquer curioso.
Mas a história…
Matinê alia a arte fantástica dos gêmeos (com direito à participação especialíssima de Marcio Moreno) a um roteiro cinematográfico, no melhor estilo Tarantino.
Um matador de aluguel no covil de um mafioso, um contrato que não pode ser quebrado e um leão de chácara que lê a Bíblia nas horas vagas compõem um cenário perfeito para uma aventura rápida, inteligente e sangrenta.
Mas o principal trunfo de Matinê reside num humor sutil.
Não um humor deliberado, feito de piadas fáceis, mas sim um tipo de humor majoritariamente gráfico, guardado minuciosamente em pequenos detalhes de cenários e acessórios das personagens.
Um humor que caminha durante toda a história com uma desenvoltura sem igual, desde as alucinações de um gaiato que comprava drogas no covil até o inusitado pagamento do contratante do matador de aluguel. Contratante este também inesperado, que se por um lado carece de uma explicação formal sobre os motivos que o fizeram procurar os serviços profissionais do assassino, por outro nos dá motivos de sobra para legitimar a chacina.
Um final perfeito para um gibi irretocável.
3 Tiros e 2 Otarios terá lançamento e noite de autógrafos em São Paulo no próximo dia 09/12, na Livraria HQMix ( Pça Roosevelt, 172 – Centro ), a partir das 19:00hs.
Já os gêmeos Marcelo & Magno poderão ser encontrados na Quanta Academia (Rua Dr. José de Queirós Aranha, 246 – Vila Mariana), no dia 16/12, onde lançarão Oeste Vermelho a partir das 18:00hs.
domingo, 27 de novembro de 2011
Ah, o amor…
1989
No inverno de 1989 eu tinha 16 anos. Era uma reunião de pais e alunos na quadra da escola. Os professores haviam convocado a reunião para falarem sobre a formatura daquele ano. Estavam lá pais e crianças das turmas da 8ª série (que estudavam de manhã) e do 3º colegial (os do período noturno).
Foi quando vi uma loirinha baixinha e magrinha olhando para mim. Bonita, olhos claros, jeito ainda de menina. Passamos a reunião inteira nos olhando de longe. Ela foi embora e eu não tive coragem nem de lhe dar um aceno ou um mísero sorriso que fosse. Esqueci o assunto e continuei minha vidinha de estudante secundarista.
Duas semanas depois, ao entrar na sala, fui surpreendido com um grande recado na lousa: “Willians, você é lindo”.
Um recado escrito naquela manhã, na mesma sala onde quem escreveu saberia que eu entraria à noite para a aula.
Deixei um poema escrito numa folha de caderno embaixo da carteira onde eu sentava. Se a pessoa havia descoberto a sala, provavelmente saberia a carteira. Era um tiro no escuro.
Na noite seguinte pude ler na carteira, escrito com ponta de compasso na madeira: “Achei lindo”.
Começava ali uma história que duraria 7 anos.
Aquele foi o primeiro grande amor da minha vida.
Pode até parecer cafona ou ingênuo hoje, mas aquela foi uma época de grandes descobertas: beijos furtivos na esquina, caras feias dos pais da menina, brigas por ciúmes (confesso, nunca vali um tostão e ela tinha motivos de sobra), o medo e a ansiedade das primeiras ousadias, as alegrias e decepções próprias dos amores adolescentes.
Uma época onde tudo no mundo, cada pensamento, cada respiração, só valia a pena por causa dela.
Valente
O Vitor Cafaggi não sabe dessa história e em 1989 – com a cara de menino que tem – ainda devia estar ensaiando os primeiros passos.
Ele também não faz a menor idéia de que me acompanhou por 8 horas no ônibus que me trouxe pra São Paulo após aquela sensacional 7ª edição do FIQ. Não ele exatamente, mas sim o seu belíssimo Valente para Sempre.
Poucas vezes na vida vi um gibi traduzir tão bem o amor.
Com um traço leve, desenhando animais fofinhos, Vitor engana a todos. A primeira impressão que temos é a de estarmos diante de um gibi infantil, feito sob encomenda para meninas de 12 anos (os meninos não, eles nunca admitirão estarem lendo tirinhas com cachorrinhos e gatinhos).
Ledo engano.
Basta a primeira tira para você entender perfeitamente que o mundo habitado por Valente está muito mais próximo da realidade do que sugere o singelo design do simpático cãozinho.
A improbalidade de um animal falante, pegando ônibus, chegando atrasado às aulas, passando noites acordado, é rapidamente substituída pela inegável sensação de que você está lendo uma biografia.
Não a de Vitor mas sim a de você mesmo.
De uma maneira simplesmente genial, Vitor Cafaggi criou um gibi com a capacidade de relembrar tudo aquilo que você um dia sentiu. Cada medo, cada sorriso, cada suave beijo de despedida no portão (antes das dez da noite, sem falta, senão nunca mais a mãe dela deixaria vocês a sós), estão ali retratados.
Valente para Sempre não é simplesmente uma leitura agradável. Valente é um sentimento bom, uma saudade de um tempo que você sabe que nunca mais voltará. Ler Valente nos faz perceber que crescemos e que nunca mais teremos o sabor daquela paixão pura e verdadeira do primeiro amor.
E fazendo isso, Valente para Sempre nos faz perceber o quanto fomos felizes numa época em que tudo valia a pena se fosse por amor.
É claro que eu não fiquei com a menina.
Minha, digamos, “personalidade” condenou aquele amor ao fracasso, como já contei aqui.
Do que não posso reclamar, afinal foi minha falta de caráter que acabou fazendo com que eu conhecesse um amor muito mais intenso e fascinante, que tem me acompanhando nos últimos 15 anos.
Mas naquele ônibus, voltando de Belo Horizonte, reencontrei-me com aquele adolescente tímido, que tinha medo das mulheres e passava noites em claro planejando o que dizer.
E eu não poderia ter melhor companhia do que o gibi do Vitor naquela viagem.
Valente para Sempre tem o sabor das cartas de amor.
Tenhamos as escrito ou não.
quarta-feira, 16 de novembro de 2011
Antes de voltar às atividades…
Ainda curando a ressaca do FIQ 2011!
Mas antes de voltar à normalidade (sim, eu pretendo voltar a escrever resenhas), um pequeno convite…
Neste sábado – dia 19 – vai ter uma baita galera num lançamento monstro lá na Livraria da Vila.
Serão 03 álbuns da Coleção Shakespeare em Quadrinhos (Otelo, do Jozz e do Akira, Romeu & Julieta, da Marcela e da Roberta e Sonho de Uma Noite de Verão, parceria minha com o Wanderson), mais a adaptação de Dom Casmurro, de Wellington Srbek e do José Aguiar.
Além do segundo volume da Coleção Moebius e Era a Guerra de Trincheiras, de Tardi.
Ou seja, quadrinhos a dar com pau!!!
Espero vocês por lá!
Grande abraço,
Lillo
segunda-feira, 17 de outubro de 2011
É a senhora sua vó!
Dona Zabé sempre preparou guloseimas.
A minha preferida era rosquinha de pinga. Comia aos borbotões. Sei lá se teve alguma relação com o gosto que tive por porres na adolescência, mas o fato é que adorava aquela cachaça, digo, rosquinhas…
Dona Isabel tem 86 anos, é lúcida (a não ser quando confunde os nomes dos netos), religiosa, mora na praia e caminha todos os dias. Dona Zabé é minha vó, mas não é muito diferente da sua.
Mas Dona Zabé além de minha vó, é com certeza – junto com todas as outras avós do mundo – a vó do Jean.
Só pode ser.
Tá bom, não lembro dele de visita lá em casa. Nunca o vi comer aqueles deliciosos bolos regados a leite de coco e também nunca dividi com ele a raspa da tigela. Nem a colher de pau lambuzada de calda de açúcar endurecida eu lembro de ter dado pra ele.
Ele pode até não ser o meu primo, mas o cara é neto da minha vó, não tenho dúvidas. Da sua também, não se engane. Esse cartunista de 39 anos roubou todas as avós do mundo só pra ele!
De que outra maneira ele saberia que a minha vó conta os remédios como quem escolhe arroz? Ou então, como raios ele poderia saber que não importa quem tenha cometido o pecado, é minha vó quem vai pagar a promessa?
Só sendo neto dela.
Pérai… Tá lembrando da sua vó, né?
O que ela faz? Ouve missa pelo rádio? É fiel ao seu avô que já morreu há vinte anos? Tem um santo na penteadeira para cada ocasião?
Sabia!
O Jean é neto da sua vó também!
Não acredita? Eu posso provar…
Tá tudo documentado. Ele até tentou esconder: disfarçou aqui, mudou os móveis de lugar ali, trocou a foto do retrato…
Mas não adianta, achei a Dona Zabé escondida nas páginas de Vó (Barba Negra – 128 páginas – R$ 12,90).
Jean Galvão é um dos cartunistas mais talentosos do país e o livro reúne cerca de 120 tiras da personagem que ele criou em 2006.
Seu traço singelo, divertido e preciso é visto a todo momento nas mais diversas publicações ou campanhas publicitárias.
Mas não é a sua enorme habilidade técnica que faz desse Vó uma coletânea de tiras memorável.
Jean, matreiro, conseguiu um feito sensacional, digno apenas dos grandes cartunistas: captou a essência de uma personagem facilmente identificável na história pessoal da maioria de seus leitores.
Ler Vó é como revisitar algumas de nossas melhores lembranças e enxergar o humor e docilidade que só uma avó pode ter. As situações representadas em suas tiras vão muito além das piadas sobre senilidade, superproteção, religiosidade ou viuvez, pois atingem em cheio sentimentos ligados a nossa mais tenra idade.
Ler vó tem sabor de rosquinha de pinga, ou de bolo de fubá, se preferir; ou ainda de assistir uma novela com aquela delícia de voz ao seu lado narrando cada uma das situações:
- Olha lá, agora ele mata ela!
- Não entra aí não sua boba!
- Bem feito, ele mereceu! Quem mandou trair ela com a Emengarda? Toma papudo!
Talvez isso explique o sucesso dessa personagem.
Ou talvez ele realmente tenha roubado a Dona Zabé, a Dona Maria, a Dona Amélia…
Jean Galvão – provavelmente se disfarçando de Lillo para roubar a Dona Zabé.
terça-feira, 11 de outubro de 2011
Não queria? Agora aguenta… (ou como eu acabei virando um roteirista - parte final)
Se algum dia você ouvir um ator dizendo “Shakespeare? Nunca fiz porque não gosto…” , não acredite!
Isso é uma mentira deslavada e o sujeito só disse isso porque 1) não se sente preparado e disfarça sua insegurança usando esse argumento, 2) nunca leu Shakespeare ou 3) não é um ator.
Tudo – absolutamente tudo – que possua dramaturgia sofre a influência desse cara. O teatro depois dele, o cinema, os seriados, as telenovelas, os gibis (sim, os gibis), ninguém escapou da poderosa herança dramática da obra desse inglês.
Nunca ouviu falar de Shakespeare? Engano seu.
Nos amores impossíveis das comédias românticas, nos heróis e em seus nobres atos, na sordidez e na mesquinharia dos avarentos, em vilões inesquecíveis como Hannibal Lecter ou Odete Roitman e em mais um sem número de personagens e histórias que você ouviu, leu ou assistiu, ouvem-se ecos de figuras shakespereanas como Romeu e Julieta, Otelo, Ricardo III ou Hamlet.
O motivo é simples: o bardo inglês captou em sua dramaturgia as mais sutis nuances da personalidade humana. Suas histórias refletem a história da humanidade, não apenas a anterior à época em que viveu (fim do século XVI e início do XVII), mas também de toda a história futura.
Shakespeare foi um dos poucos na história da humanidade que entendeu (ou ao menos soube retratar) o ser humano em toda sua plenitude.
E entendendo o ser humano, criou histórias que nunca envelhecerão e continuarão a ser adaptadas daqui a 500 anos, com o mesmo vigor.
Então imaginem o meu mais puro pavor ao ler aquelas linhas:
“Os álbuns que gostaríamos de encomendar a você são adaptações de obras de William Shakespeare(…)”
É muita responsabilidade.
Eu poderia ter dito não.
Não seria difícil, quer ver?
“Wellington, olha, agradeço a oportunidade mas é o seguinte: eu não tenho experiência alguma em roteiro para quadrinhos, não acho uma boa idéia, vamos aproveitar que tá tudo no começo e encerrar por aqui, você procura outro cara já com experiência e eu continuo escrevendo no blog.”
Poderia mas não o fiz.
O ator dentro de mim jamais deixaria de aceitar tal desafio.
Luiz Melo como Macbeth em Trono de sangue, direção de Antunes Filho. Ensaio fotográfico de Emidio Luisi
Mas como diabos você adapta alguém que já foi encenado milhares de vezes, adaptado para todas as mídias existentes, estudado, dissecado e reinventado?
Srbek nesse caso me fez um enorme favor ao revelar que a linha editorial da coleção se pautaria pela fidelidade aos textos originais, sendo permitida apenas a adaptação da linguagem aos nossos tempos, obedecendo – claro – as limitações e liberdades narrativas próprias dos quadrinhos.
Adaptar uma obra clássica para uma outra mídia que não a sua original não é uma tarefa fácil. Cuidados devem ser tomados para tornar a história inteligível sem descaracterizá-la.
Pegar um texto de teatro e encená-lo é um processo natural, mas transformá-lo numa história em quadrinhos é, para se dizer o mínimo, ousado. Fazer isso com Shakespeare é simplesmente uma tarefa insana.
Por mais influência que o bardo inglês exerça sobre as mais diversas formas de entretenimento, o que eu faria ali seria transpor uma história imortal para um gibi que seria lido por uma imensa maioria que nunca teve contato com o texto original.
Em outras palavras, eu, o Wanderson, o Wellington e a Nemo seríamos os responsáveis por apresentar um texto original de Shakespeare pra uma galera que talvez nunca tenha ouvido falar no nome do bardo.
É claro que paranóico do jeito que sou, quase enlouqueci. Não com os prazos, esses geraram o estresse normal que geralmente compromissos com data marcada geram e foram cumpridos à risca, tampouco com o processo de aprovação do roteiro – e em relação a isso fica aqui meu agradecimento pessoal ao Wellington, que pacientemente sugeriu pequenas alterações e adaptações de ordem narrativa que, confesso, só aumentaram a qualidade do álbum – o que, aliás, é o trabalho de um editor.
O que pegou mesmo foi o peso da responsabilidade em – numa única tacada – interpretar todos os personagens de uma peça de Shakespeare!
Mas não vou contar agora a doideira que foi adaptar Shakespeare. Guardarei isso para a época do lançamento, já que é a única coisa que posso fazer, visto que seria muito deselegante (e pretensioso) resenhar o próprio gibi…
E quanto mais perto chega da data do lançamento (que ocorrerá em Belo Horizonte, no FIQ, à partir de 09/11) mais penso na aventura e loucura que foram aquelas semanas iniciais.
Nos vemos então no FIQ!
Se estou com medo?
Caras, eu estou apavorado…
segunda-feira, 10 de outubro de 2011
Eu sei que estou atrasado, mas…
… a Faculdade me pegou de jeito e tive que priorizar as provas. Então não terminei ainda a última parte. Peço desculpas à galera que tem acessado e prometo que amanhã a noite (nem que eu vare a madrugada do feriadão) postarei a última parte.
Valeu a todos!
Lillo
sexta-feira, 7 de outubro de 2011
Shakespeare?!? Tô dentro! (ou como eu acabei virando um roteirista - parte II)
- Ele falou que você vai fazer o quê ?
Minha esposa estava incrédula do outro lado da linha. Acendi outro cigarro, na guimba do anterior.
Sim, poucos minutos antes Wellington Srbek, editor da Nemo, havia me convidado a fazer um álbum de quadrinhos.
Não disse do que se tratava, falou apenas quem seria meu parceiro na empreitada, o talentosíssimo Wanderson de Souza.
Eu sinceramente não lembro o que respondi na hora. Quem me socorreu foi o amigo Daniel Esteves, depois de ler a primeira parte dessa crônica:
- Eu percebi, rarara : "e…e…eu? Escrever um roteiro? Mas não sou roteirista!"
- Eu falei isso???
- Algo assim… não lembro das palavras exatas, mas voce deixou claro que nunca tinha escrito quadrinhos, ao que o Srbek combateu falando sobre suas matérias e tal, que tinham narrativas nelas... que você se sairia bem, que voce faz teatro, etc, etc, etc.
E deve ter sido assim mesmo. O fato é que ali estava eu, em frente a HQMix, acendendo meu terceiro cigarro e ainda sem entender o que estava acontecendo.
Ou o Wellington havia enlouquecido ou sabia mais do que eu. Dez meses depois fica claro que naquele momento Wellington estava bastante lúcido. Mas eu já chego lá.
Terminada a reunião, fomos eu, o Wellington, o Will e o Daniel comermos algo na Paulista. O que vou dizer aqui pode ocasionar uma quebra justificada de contrato, mas desconfio que o mineiro estava se deliciando com aquela situação.
Contando por baixo, naquela mesa tinha uns dez prêmios HQMix e mais uma porrada de Ângelo Agostini.
O que eu tava fazendo ali? Do que aqueles caras estavam falando? Como assim eu ia fazer um gibi? Por quê exatamente eu fui pedir um x-bacon? Aquilo tudo tava me dando uma azia infernal…
Eu tinha que saber o que estava acontecendo. Tenho uma necessidade mórbida de racionalizar tudo, deve ser efeito colateral pelos excessos da juventude. Então, na primeira oportunidade que tive a sós com o Wellington (acho que estávamos na FNAC) perguntei sem rodeios:
- Você tem certeza do que cê tá fazendo?
Ele tinha certeza. Aquilo era sério.
Não sejamos hipócritas. Uma chance assim não bate à sua porta todo dia.
Nunca tinha feito um roteiro e era um completo desconhecido no meio. A meu favor apenas um blog de resenhas em forma de crônicas.
A realidade me atingiu como um raio horas depois, voltando de carona com o Daniel, debaixo de um dilúvio bíblico, que transformou um percurso de 25 minutos numa viagem de mais de uma hora.
Tenho que confessar que foi divertido. Desviamos de uma Radial Leste (a principal via de acesso para a Zona Leste de São Paulo) totalmente alagada apenas para cairmos numa viela da Móoca que mais parecia um rio.
- Será que dá?
Eu pensei comigo: “Esse maluco não vai enfiar esse Renalt Clio nessa lagoa… ele não vai fazer isso”.
Bem se via que eu ainda não o conhecia…
- Mano! Que cê tá fazendo?
Bem, ele estava atravessando um rio. E eu pensando: “Vou morrer afogado antes de conseguir fazer esse gibi…”
Enquanto eu me recuperava do susto, o Daniel – como se atravessar o Rio Amazonas num carro anfíbio fosse a coisa mais normal do mundo – comentou com a maior naturalidade:
- Putz! Você vai fazer um álbum! Como foi isso?
Aquilo me pegou de surpresa. O Daniel é um dos caras mais talentosos da atualidade, seus quadrinhos são uma coisa rara e tem o mesmo delicioso sabor de um bate papo num boteco. O cara está há anos batalhando e dando a cara a tapa. O Will também. E eu era apenas um cara que escrevia num blog e tinha nome de chupeta.
Aquela pergunta merecia uma resposta sincera. Não seria educado responder de outra forma ou simplesmente fugir do assunto.
- Não sei meu velho. O cara gosta da forma como eu escrevo no blog e acha que eu posso fazer um gibi.
Mas não era apenas isso.
A resposta às minhas perguntas chegaram um mês depois, num longo e-mail explicando os pormenores do projeto, prazos, valores e coisas do tipo. Já perto do final, algo que me deixaria de cabelo em pé nos 60 dias seguintes:
“Os álbuns que gostaríamos de encomendar a você são adaptações de obras de William Shakespeare, voltadas ao público de 11 a 15 anos, sendo: ROMEU & JULIETA por Marcela e Roberta e SONHO DE UMA NOITE DE VERÃO por Lillo e Wanderson.”
Eu sou ator.
Tenho 20 anos de teatro.
Dez deles num dos mais fascinantes e longevos grupos do mundo.
Caras, aquilo era praticamente como oferecer heroína pra um viciado…
terça-feira, 4 de outubro de 2011
Como assim eu vou fazer um gibi? (ou como eu acabei virando um roteirista - parte I)
Eu sou um cara de teatro.
De um tipo bem específico de teatro.
Esqueçam a maquiagem branca na cara, as performances que sempre rolam quando a figura está chapada, seja numa balada ou num batizado, as poses afetadas e aquela voz carregada que mais parece cria do inferno do que garganta de gente de verdade.
Essa fase eu vivi dos 17 aos 27, depois cansei.
Foi justamente quando encontrei o Teatro Popular União e Olho Vivo. Não sabe de quem estou falando? Não esquenta, clica na postagem que fiz sobre o plágio envolvendo o gibi Chibata e você vai entender melhor.
E foi onde eu passei os últimos dez anos da minha vida. Um lugar mágico, onde aprendi praticamente tudo que sei sobre teatro, arte e cidadania.
Por razões pessoais, decidi, lá por novembro do ano passado, que me afastaria do grupo por um tempo. Naquela época – embora eu ainda não soubesse – já estava afundado até o pescoço nos quadrinhos. Um sujeito se encarregaria de colocar o pé na minha cabeça e me afundar de vez, mas eu já chego lá.
Só que foram dez anos de minha vida naquele grupo, correndo a periferia da cidade, viajando o Brasil, sorrindo, chorando, vivendo…
Eu não sairia assim, tão impune.
A verdade é que quase enlouqueci. Naquele galpão do bairro do Bom Retiro, colado no centro velho de São Paulo, está boa parte de minha história e – sem dúvida alguma – muito da alma que penhorei quando decidi ser um artista.
Sou capaz de interpretar um assassino cruel numa cena e, três minutos depois, enquanto o público ainda está tentando processar a carga dramática que acabou de receber, entrar travestido de uma drag bêbada. Consigo fazer uma voz num registro agudo e alterá-lo para o grave dentro da mesma fala. Tenho uma voz potente, raras vezes precisei de microfone em apresentações a céu aberto…
Bela bosta!
Sou ator e quase não consegui escapar de um simples conflito emocional por uma decisão que eu mesmo tomei!
E era nesse pé em que as coisas estavam quando em janeiro, numa visita a Belo Horizonte, conheci pessoalmente o amigo e roteirista Wellington Srbek, com quem já trocava intensa correspondência desde julho do ano passado.
Entre muito bate papo e uma ótima pizza, ele me convidou a participar de uma reunião que faria dali a duas semanas, aqui em São Paulo, com uns caras com quem ele estava querendo trabalhar.
Foi naquela noite que descobri que ele havia acabado de se tornar o editor da Nemo. Como é de hábito, fiquei de boca calada.
Mas estava empolgadíssimo! Meu amigo era agora um editor! Publicaria quadrinhos e tinha acabado de me convidar pra uma reunião secreta, com uns tipos perigosos, armados até os dentes de pincéis e nanquim…
Na data marcada, fui pra tal reunião com a esperança que o Srbek me convidasse pra escrever o texto de introdução de algum álbum. Afinal, por qual outro motivo ele teria convidado um resenhista para a reunião?
Confesso, eu sou uma besta às vezes…
Não vou contar quem estava ou não na reunião e nem o que foi conversado. Alguns nomes não são segredo, além do Wellington e de mim, o Will estava por lá para fechar sua participação em Ciranda Coraci e o Senhor das Histórias. O Daniel Esteves – com quem já havia cruzado algumas vezes mas nunca havia sido formalmente apresentado – estava ali para fechar sua participação num dos álbuns. O Jozz também foi, embora só tenha saído de lá sabendo que faria um álbum para a Nemo, mas ainda sem saber que se tratava de Otelo, de Shakespeare. O Wanderson de Souza também estava lá, tão perdido quanto eu.
E eu pensando na tal da introdução…
Em um determinado momento, entretanto, depois de nos contar o que era a Nemo e qual seria seu projeto editorial, o mineiro vira pra mim e pro Wanderson e atira à queima roupa, sem qualquer chance de defesa:
- Aliás, é melhor vocês sentarem mais perto e virarem os melhores amigos, porque provavelmente
vão fazer um álbum juntos…
Eu não sei exatamente que cara eu fiz, mas deve ter sido de um pavor absoluto. Só o Wellington percebeu. Se o Will reparou, foi educado em disfarçar.
Como assim eu faria um gibi???
sábado, 24 de setembro de 2011
Cachoeira
Antes que alguém venha com qualquer risinho malicioso, confesso: sim, estou escrevendo essa resenha porque o André Diniz está lançando o seu A Cachoeira de Paulo Afonso (Pallas Editora – 64 páginas - R$ 30,00) neste mesmo fim de semana, lá na HQMix.
Mas este blog não é patrocinado por absolutamente ninguém (e pelamordedeus, vai continuar assim; de gente se intrometendo no que eu penso ou deixo de pensar já basta a minha mulher), então se eu não tiver um mínimo de senso de oportunidade é melhor parar de escrever crônicas e publicar sinopses prontas.
Mas o fato é que o Gibi Rasgado ficou quase um mês sem atualizações e acho que uma boa maneira de desculpar-me com meu público (todos os 07 caras) é falando sobre um bom gibi.
E já faz um tempo que tava querendo escrever essa resenha. Só não aconteceu antes porque 1) eu tinha acabado de resenhar Morro da Favela e 2) o texto da resenha ainda não tinha chegado na minha cabeça.
Não me entendam mal, não é que eu não tenha gostado do gibi. Eu adorei! Só não sabia como escrever sobre ele.
E, claro, ainda não sei.
Mas arrumando (sem sucesso) a minha estante, tropecei numa pista daquelas…
Não me perguntem como esse gibi veio parar nas minhas mãos. Em 2001 é que não foi. Na época em que foi lançado eu estava em outra pegada. Pensava e respirava teatro e quase não lia mais gibis.
Mas o mundo é um lugar esquisito e dez anos é muito tempo. As pessoas mudam. Outras não, só melhoram.
André Diniz é um daqueles raros roteiristas que não importa o que lhe caia nas mãos, ele fará um bom trabalho. O Quilombo Orum Aiê, Morro da Favela e agora A Cachoeira de Paulo Afonso que o digam. Poucas vezes se viu um roteirista emplacar tanta qualidade de forma consecutiva em assuntos tão diversos (o primeiro é ficcional com um pano de fundo histórico, o segundo é uma história verídica sensacional, contada de maneira belíssima, e o último uma adaptação de um ícone da literatura nacional).
E eu poderia perder horas inteiras falando em como esse carioca radicado em São Paulo conduz habilmente uma história. Mas prefiro voltar a aquele gibi de 2001 e que não faço a menor idéia de como ou onde o consegui: 31 de Fevereiro, uma das primeiras publicações da então recém fundada Editora Nona Arte, com roteiro e arte do próprio Diniz, que àquela época já não era nenhum aventureiro e trazia em seu currículo Fawcett (em parceria com Flávio Colin, o mais genial desenhista de quadrinhos brasileiros em todos os tempos) e a série Subversivos.
Um gibi bem escrito, com uma história pra lá de nonsense sobre Gilda, um ex-travesti que acaba de amargar uma temporada na cadeia. Passada num Brasil atemporal, que mistura passado e presente através de suas sórdidas semelhanças, 31 de Fevereiro esbanja talento narrativo e já mostra o afiado roteirista que conhecemos.
Mas com uma arte irregular. Quadros muito bons se alternam a outros apenas medianos, mostrando ainda um desenhista em busca de seu estilo.
Vence a qualidade do roteiro numa história pra lá de pirada.
Mas dez anos é muito tempo.
Não sei quem enfiou na cabeça daquele desenhista de 31 de Fevereiro que ele servia pra coisa. Seja quem foi o insano que aconselhou o André a continuar rabiscando, devemos a ele nossos mais sinceros agradecimentos.
A Cachoeira de Paulo Afonso é um dos mais belos trabalhos gráficos do ano e mostra um desenhista maduro, sofisticado, de um estilo único, expressivo e com um senso de equilíbrio absurdo na composição dos quadros.
Castro Alves escreveu alguns dos poemas mais marcantes de nossa literatura. Abusado, trouxe a arte para a vida real e defendeu abertamente o fim da escravidão. Sua obra é materia secundarista e vestibular. A estrutura e a temática de seus poemas são estudadas à exaustão nas Universidades Brasil afora. Um gênio.
Adaptá-lo para os quadrinhos?
Tarefa só pra gente grande.
E é por isso que A Cachoeira se torna um gibi tão delicioso. Quando o comprei, não duvidava nem um pouco que o roteirista André Diniz daria conta do recado. Aliás, depois de Morro da Favela eu não duvido de mais nada desse cara.
Mas estava curioso em saber como ele iria desenhá-lo.
O que vemos em A Cachoeira são três aspectos bem distintos:
De um lado a força da poesia de Castro Alves, que mesmo romântica e envelhecida por quase 150 anos de evolução humana, ainda guarda um vigor e uma atualidade impressionantes, sobretudo na questão social e nos pesos e medidas que a justiça reserva a brancos e negros, a ricos e pobres, que hoje, como na história contada no século XIX, ainda é – apesar do que digam os causídicos – bastante parcial;
No outro lado vemos um roteirista que vem, ano após ano, se firmando como um dos melhores exemplos de habilidade narrativa de nossos quadrinhos. Prova irrefutável é o zeloso respeito e absoluta fidelidade que dedicou ao texto original. E ainda assim, a forma como decidiu contar a história, em como organizou e distribuiu os elementos narrativos nas 52 páginas do gibi mostram que mesmo as obras mais improváveis de nossa literatura podem ser adaptadas para os quadrinhos e ainda assim resultarem em gibis originais e envolventes.
E aqui devo abrir um parênteses: se André fosse cineasta e esse A Cachoeira um filme, muitos o estariam aplaudindo como uma obra prima do cinema nacional, mesmo que para ser filmado houvesse consumido rios de dinheiro público através de captação de verbas no imoral mecanismo da indecente Lei Rouanet, que transfere ao poder privado a decisão do que devemos ou não consumir baseados em seus próprios interesses de exposição de marca. Como é um gibi vão dizer que é só mais uma adaptação feita exclusivamente para entrar no PNBE…
E por fim, amarrando as duas pontas, temos o excelente desenhista André Diniz, que traduziu em imagens belíssimas o que existe no poema de Castro Alves.
Das páginas iniciais, que apresentam o ambiente e as personagens principais, até as 05 páginas finais, que reservam a redenção do casal numa sequência memorável, Diniz desfila uma desconcertante maturidade gráfica, com direito a quadros geniais, como o do narrador trepado no coqueiro, onde diálogo e imagem se confundem com as águas do Rio São Francisco, ou a sequência de ecos na cabana de Maria – quando o protagonista é levado à loucura, numa sucessão de quadros alucinantes, que reproduzem de forma impressionante uma das passagens mais dramáticas do poema original.
A Cachoeira de Paulo Afonso possui um roteiro excelente e extremamente bem executado, mas é sua arte que o torna excepcional.
domingo, 4 de setembro de 2011
Histórias Inesquecíveis: A Melhor História do Homem Aranha
Publicada originalmente no Quadro a Quadro em 03/04/2011
Você provavelmente nunca ouviu falar de Tim Harrison.
Ele não tem nenhum superpoder, não voa e não virou o inimigo mortal de ninguém. Mas ele é o responsável por uma das melhores histórias do Homem Aranha em todos os tempos.
Buscando na memória? Vou ajudar: Roger Stern foi o roteirista e Ron Frenz desenhou.
Não lembra? Não faz mal, você precisaria ter mais de 35 anos para lembrar.
Mas talvez você já tenha trombado com algum scan na internet ou com a republicação da Panini de alguns anos atrás. Ou talvez o nome da história ajude: “O Menino que coleciona Homem Aranha”.
Se você tem a minha idade e gostava do Cabeça de Teia na adolescência eu tenho certeza de que está sorrindo agora, com saudades de um tempo em que os quadrinhos norte-americanos começavam a amadurecer mas ainda não tinham se tornado essa confusão de mundos paralelos e sagas sem fim, que se emendam umas nas outras e duram anos.
Já se você tem metade da minha idade, deixa eu te contar uma história…
Eu tinha uns 12 anos naquela época. Eu ainda não sabia, mas aquele era o último ano da minha infância tal qual eu conhecia. Logo depois estaria empregado, estudando a noite, namorando e todas essas coisas chatas que levam nossa vida pra um caminho sem volta. O estranho que quanto mais trilhamos esse caminho menos gibis encontramos espalhados pelo chão.
Mas naquele tempo eu ainda não pensava nisso. Ficava contando os dias para que os gibis que eu colecionava chegassem às bancas. Os tempos eram difíceis, meu pai estava desempregado e minha mãe trabalhava como ajudante no boteco do meu tio, já eu puxava lata de concreto nos finais de semana como auxiliar de pedreiro com um outro tio meu.
Puxava lata era modo de dizer, eu não tinha forças para tanto. Mas o pouco que fazia me rendia uns cruzados por mês. Não devia ser muito, no máximo uns cem reais em valores de hoje, mas servia pra ajudar a botar comida na mesa. Daquele dinheiro eu tinha autorização pra comprar 02 gibis: o Homem Aranha e o Incrível Hulk, os antigos formatinhos da Abril.
Então imaginem minha ansiedade.
A banca de jornal ficava a umas cinco quadras de casa. O chato é que eu praticamente lia o gibi todo no caminho de volta e tinha que ficar esperando um mês inteiro até o próximo.
Mas naquela tarde eu cheguei em casa chorando. Minha mãe, preocupada, perguntava o que tinha acontecido.
Essa foi a minha resposta e acho que ela nunca soube o motivo do meu choro. Talvez descubra agora, se ler o Quadro a Quadro: naquela tarde eu chorava pelo Tim.
Tudo bem. Eu sou capaz até de chorar com uma receita de bolo, se ela estiver bem escrita. Mas “O Menino que coleciona Homem Aranha” foi a primeira história que me levou às lágrimas.
Exagero? Definitivamente não.
Após uma matéria do Clarim Diário, o amigão da vizinhança fica sabendo de um moleque chamado Timothy Harrison, um fã incontestável do Cabeça de Teia, que coleciona tudo o que diz respeito ao herói, desde os tempos de luta livre na TV.
O nosso herói resolve então visitá-lo.
Simples não é? Então por que tanta choradeira?
Porque essa é uma das histórias mais sensíveis que já li. Nós, fãs de quadrinhos, sempre tivemos dificuldades em aceitar a realidade. Quando crianças, não raro somos surpreendidos com pensamentos como: e se ele existisse de verdade? E se eu fosse o Capitão América? E se a Mulher Maravilha fosse minha namorada? E se eu pudesse voar?
Exatamente por isso, um garoto que colecionava tudo do Homem Aranha era praticamente nosso irmão.
Poderia estudar na nossa escola e juntos discutiríamos as melhores histórias do Aranha, ou então brincaríamos com as clássicas (sem) action figures da Gulliver.
Mas calhou de Tim ser um personagem de história em quadrinhos e calhou de sair naquele HA19, no já distante ano de 1985.
Tim inevitavelmente cairia nas graças daqueles moleques que liam o gibi do Homem Aranha. Ele era praticamente a encarnação do que gostaríamos de ser.
Hoje, quase 30 anos depois, ainda lembro nitidamente da história, suas falas, os suvenires de Tim, a emoção legítima e o fim impiedoso (como impiedosa muitas vezes é a vida).
E é por isso que a história se tornou clássica. Apresentou-nos à realidade. Um choque para aqueles moleques acostumados a ver o Aracnídeo escapando das mais aterrorizantes situações. Naquela história, o Homem Aranha não venceu.
A quem não leu a história, Tim jamais chegou à idade adulta, ficou imortalizado naquele corpo de guri no início da década de 80.
E a quem leu, bem…
Quem leu jamais se esqueceu de Timothy Harrison.
“O menino que coleciona Homem Aranha” foi publicada originalmente no Brasil em janeiro de 1985, na revista Homem Aranha nº 19, pela Editora Abril, e republicada pela Panini em 2007, no especial Marvel -40 Anos no Brasil.
domingo, 28 de agosto de 2011
Novidades da Semana
Nesta semana, duas resenhas de HQ nacionais. E o melhor: as duas com elementos sobrenaturais!
A primeira revela uma paixão de infância por um dos melhores gibis brasileiros de terror em todos os tempos: Calafrio.
A volta ao mercado desse ícone, que durante mais de uma década abrigou os melhores profissionais das décadas de 50, 60 e 70, além de revelar grandes talentos até então desconhecidos do grande público, é uma das melhores notícias do ano.
Leia a crônica Calafrio: cachimbo, vela preta e a ressurreição de um mito, aqui mesmo, no Gibi Rasgado.
E teve também o lançamento de Birds, do Gustavo Duarte.
É simplesmente impossível não resenhar um gibi desse cara. Se você ainda não conhece seu trabalho ou se só conhece as charges esportivas que ele faz, um recado: seus gibis são sensacionais!
E Birds é seu primeiro gibi de terror. Bem, terror não é exatamente a palavra. Quer dizer, é. Mas também não é… Quer saber? É melhor você ler a resenha Birds: estilingue certeiro, lá no Quadro a Quadro.
Boa semana a todos!
Não se esquecendo que amanhã, dia 29/08, lá na Livraria da Vila (Alameda Lorena, 1731 – Jd. Paulista – SP) tem o lançamento de Histórias do Clube da Esquina, do Laudo Ferreira e Omar Viñole.
Imperdível.
quarta-feira, 24 de agosto de 2011
Calafrio: cachimbo, vela preta e a ressureição de um mito
Ou ainda o medo da inevitável morte representado em nossos piores pesadelos.
Mas tem também sonhos que nos perseguem durante a vida. Ou, como diriam nesse mundo doido dos negócios e dos livros de auto ajuda, objetivos.
Todo mundo tem, não olhe para o outro lado pensando que não é com você também.
É o sonho da casa própria, de um emprego estável, de sucesso e mulheres deslumbrantes, de príncipes encantados montados em suas ferraris. Ter um filho, fazer uma faculdade, conhecer o “estrangeiro”, comprar um vestido, ressuscitar um gibi, trocar de carro, abrir um negócio próprio…
Peraí!
Ressuscitar um gibi???
Sim, por que não? Tem gente que tem o sonho de chupar neve em Bariloche, porque eu não poderia querer ressuscitar um gibi?
Logo após doar toda a minha coleção de gibis, ainda não conseguia me livrar do vício das bancas. Sempre passava por uma, via o que estava saindo mas não comprava nada. Naquela época achava que estava realmente curado.
Foi quando comecei a sentir falta de algo que atravessou toda a minha infância e adolescência. Curioso, perguntei ao jornaleiro e ele respondeu seco:
- Mais uma que parou de ser publicada.
Eu já não colecionava mais, havia decretado o fim “daquela coisa de criança” na minha vida mas ainda assim foi um choque. A Calafrio, um dos melhores gibis brasileiros de terror de todos os tempos, havia encerrado sua carreira.
Obviamente que aquela minha suposta “cura” era uma farsa e foi apenas uma questão de tempo até que os gibis voltassem ao meu cotidiano. Uma das primeiras coisas que fiz ao voltar a ler gibis foi começar o árduo trabalho de garimpar em sebos e feiras livres os números antigos da excelente publicação de Rodolfo Zalla.
Para quem não sabe, com a falência da Editora Vecchi no início dos anos 80 e, consequentemente, o cancelamento das revistas Spektro, Pesadelo, Histórias do Além e Sobrenatural, as revistas Calafrio e Mestres do Terror, ambas da Editora D’Art e editadas pelo incansável Rodolfo Zalla, foram as únicas representantes nacionais nas prateleiras das bancas de jornal. Havia também a excelente Kripta, da Rio Gráfica Editora, mas essa só publicava material das norte americanas Eerie e Creppy, e não tinha boitatá, escravos mortos assombrando fazenda nem mula sem cabeça.
Foram nas páginas de Calafrio que pudemos ver gênios como Rodolfo Zalla, Eugenio Colonesse, Júlio Shimamoto e Flavio Colin desfilarem seus traços, além de toda uma geração de novos talentos, que tinham ali uma rara oportunidade de iniciarem suas carreiras.
Aquela foi a última grande publicação regular de terror no Brasil. E depois dela somente trevas, mas não das que gostávamos.
Sempre tive o desejo de ressuscitar a Calafrio. Um desejo doido, é claro, já que não sou editor, mas ainda assim um sonho. Um gibi daquele não poderia ficar guardado apenas nas memórias e estantes de antigos fãs. Aquela publicação representou toda uma era e foi o último grande reduto dos desenhistas e roteiristas que ajudaram a construir a indústria de quadrinhos que hoje parece finalmente se solidificar.
Mas o jornalista Wagner Augusto, do Clube dos Quadrinhos, graças aos deuses que protegem os quadrinhos nacionais, parece nunca ter abandonado a mesma ideia. Em parceria com o próprio Zalla, acabou de lançar uma nova edição de Calafrio.
Seguindo a numeração original, o exemplar 53 da coleção volta após quase duas décadas. Um lançamento que deve, antes de tudo, ser comemorado com cachimbo e vela preta.
Com um novo tratamento gráfico e visual, além de um formato ligeiramente maior, esta nova Calafrio promete ter vindo para ficar. Para alegria dos antigos fãs, eu incluído.
Mas os desafios não serão poucos. O público de hoje é bem diferente daquele de 30 anos atrás. E esse será o grande obstáculo à continuidade da publicação.
Uma geração altamente tecnológica, acostumada a uma leitura ligeira, que posta notícias através do celular, no momento em que ocorrem, e que tem como principal referência de quadrinhos nacionais apenas os profissionais que trabalham para as grandes editoras norte americanas.
Nomes como Colin, Lyrio Aragão ou Rubens Cordeiro pouco ou nada dizem a essa geração.
Um erro imperdoável próprio da juventude, que pouco se interessa pelo passado, mas que a nova Calafrio tem a rara oportunidade de corrigir.
Se esta 2ª fase der continuidade à linha editorial que a tornou célebre, a indústria de quadrinhos nacional terá uma publicação que o gênero terror (um dos mais populares de nossa história) há muito não via.
Um gibi com histórias clássicas mas também com material inédito.
Mas principalmente, um gibi com material e temas brasileiros. Algo que, sem dúvida, o mercado atual precisa mais do que nunca, sob pena de perder a mais bela de suas características, a multipluralidade.
E enquanto mostra sua cara às novas gerações, a Calafrio poderá contar com o apoio e carinho daqueles que nunca duvidaram que um dia ela voltaria a nos assombrar.
Não pude realizar o sonho de ressuscitá-la. Mas tive o enorme prazer de vê-la de volta ao mercado.
Como disse, algo que deve ser comemorado com cachimbo e vela preta.
Em tempo: ontem esqueci de agradecer publicamente ao encantador Rodolfo Zalla. No dia do lançamento, após autografar a edição 53, esse gênio dos quadrinhos honrou-me com mais um autógrafo, dessa vez na nº 01 original. Algo que guardarei para a vida inteira.
domingo, 14 de agosto de 2011
Produtos e Produtores
Nos quadrinhos, longe dos holofotes que o andam iluminando ultimamente por conta da recente (e merecida) exposição de brasileiros no mercado estadunidense, existe todo um mundo que a maior parte dos leitores de quadrinhos (sobretudo de comics americanos) desconhecem, mas que pulsa a um ritmo frenético.
Algo que convencionamos chamar de mercado independente.
Um conceito totalmente equivocado mas bastante difundido, atribui ao mercado independente uma suposta responsabilidade sobre a “má qualidade” dos quadrinhos nacionais, à revelia de todas as provas de vitalidade e criatividade que ele tenha demonstrado nos últimos anos.
Basta uma rápida visita aos diversos fóruns especializados em quadrinhos (em uma parte bastante especifica dos quadrinhos, é bom lembrar) para cruzarmos com palavras como “lixo”, “merda” e “mal feito”. Não discordo que parte de nossa produção não possua a devida qualidade, mas me pergunto: qual mercado não sofre o mesmo desequilibrio qualitativo em sua produção?
Ou quem em sã consciência vai dizer que aquela aberração chamada Saga do Clone é merecedora da enorme tradição de um dos personagens mais bacanas e populares de todos os tempos? E para não dizer que só pego no pé da Marvel, quem poderia prever, ao ler O Derrotista, que o cara que escreveu aquilo seria no futuro o autor de Palestina e Gorazde?
Obras boas e ruins são comuns em qualquer mercado, mesmo nos mais estruturados, como o Oriental, o Americano ou o Franco-Belga (tá, lá é mais difícil, mas também acontece).
O que não podemos é, sistematicamente, acreditar que os quadrinhos nacionais não possuem qualidade e que o mercado independente é o grande vilão da história.
Colin publicou durante anos no mercado independente. Laudo Ferreira, André Diniz, Wellington Srbek, Danilo Beyruth e tantos outros nomes que hoje começam a ser apontados como referências nos quadrinhos nacionais, já publicavam excelentes trabalhos em gibis que variavam do papel jornal à xerox em A4 dobrado.
Acontece que durante muito tempo, o mercado independente era a única opção. E os caras tinham que sambar pra se fazerem ouvidos, pois as editoras só queriam (e muitas ainda só querem) um novo Maurício, um novo Ziraldo ou – o máximo da ironia – um novo trio de alucinados como Laerte, Angeli e Glauco (acho que não preciso contar aqui o barulho que eles fizeram na década de 80, vindos diretamente do mercado independente e com uma produção totalmente não convencional, muito mais próxima do underground de Crumb e Shelton, do que o padrão Turma da Mônica).
Mas o rolo compressor chamado informática – e com ela a internet – tem mudado radicalmente a forma de se produzir quadrinhos. O barateamento dos processos gráficos que envolvem sua produção e a incorporação de softwares de edição e imagens no cotidiano dos profissionais tem proporcionado um boom qualitativo no mercado independente. A xerox deixou de ser a principal opção e se tornou opção estética.
Outro dia estava ali na HQMix, fumando um cigarrinho com o Gual, e conversávamos justamente sobre os meios de produção atuais, da facilidade em se produzir novos formatos, novas cores (não exatamente novas, as cores sempre estiveram por aí, mas agora conseguimos imprimi-las), quando nos chega um carinha barbudo, simpático, acompanhado de sua também simpática esposa.
Após um abraço afetuoso no Gual, somos apresentados. O cara se chama Rafael Química e estava ali para apresentar o seu Produto. Não, não é um trocadilho, o gibi do cara se chama Produto e conta as desventuras de um tomate que sonhava ser modelo de natureza morta para algum pintor famoso.
Idiota? Ingênuo? Uma “merda” como dizem os pseudo entendidos em quadrinhos?
Não, na verdade está mais para genial.
Química aproveita o mote nonsense para produzir uma sarcástica história sobre como as coisas podem acontecer na indústria, seja ela qual for, e em como os sonhos e anseios de alguém podem dar terrivelmente errado – ou certo – nessas terríveis engrenagens que movem o show business. Uma ácida crítica que nos leva a uma honesta reflexão sobre os meios de produção e seus valores éticos e financeiros.
E tudo isso num bom humor de fazer inveja a qualquer um, a começar pela capa serigrafada, que simula uma banal caixinha de papelão dessas que habitam qualquer prateleira de supermercado (numa referência à maior e mais genial piada da história da arte). Dividido em duas histórias, Produto nos mostra dois pontos de vista: o do surreal tomate e o de seu incansável agricultor. A mesma história, dois caminhos diferentes que se não levam ao mesmo lugar, levam à mesma constatação e que se desdobram em outros pontos de vista.
Cínico, divertido e extremamente bem feito, Produto corrobora tudo aquilo que disse sobre o equivocado conceito de que os quadrinhos nacionais não possuem qualidade e vai além: mostra que o mercado independente deixou de ser a única opção e é hoje (como sempre foi, mas hoje mais do que nunca) o principal veículo para aqueles que tem algo a dizer além da obviedade enlatada que (ainda) pretende imprimir um suposto padrão de qualidade aos quadrinhos e ditar as regras do que deve ou não ser lido.
Como disse, às vezes não precisamos de mais do que alguns minutos para perceber que um cara ainda vai fazer barulho.
Rafael Química é um deles.
Para conhecer mais sobre o trabalho de rafael Química, acesse http://quimicarafa.blogspot.com/
sábado, 6 de agosto de 2011
Histórias Inesquecíveis: Caminhos escuros, sonhos que terminam e pessoas que se recusam a deixar de sonhar
Quando crianças, somos capazes de coisas incríveis.
Faz parte da natureza humana a invenção, a criatividade, o sonho. E é nas crianças que isso se revela em sua forma mais pura e devastadora.
A imaginação de uma criança é capaz de tudo. E se o tudo não for o suficiente ela é capaz de ir além.
Mas crescemos e em algum momento de nossas vidas algo se quebra em nossa mente infantil. É geralmente o momento em que também começamos a crescer.
Algo sutil, que quase nunca podemos precisar quando e onde acontece. Mas é ali que iniciamos a demolição de todo o mundo idílico de nossa imaginação e começamos a nos tornar adultos.
E essa é uma das vantagens de envelhecer. A memória se apura com a idade e coisas vem à tona. Geralmente as coisas que merecem ser lembradas.
17 de setembro de 1985. Falando assim parece apenas uma data. Era uma terça feira à noite e eu tinha acabado de completar 13 anos. Lembro muito bem porque tinha andado a pé 05 km até a casa da minha tia, no outro lado do morro que é a Vila Formosa, zona leste de capital paulista.
Não tínhamos mais nenhum dinheiro em casa e minha irmã mais nova precisava de leite na manhã seguinte. E mais: ela completaria quatro anos naquela manhã e minha mãe queria fazer um bolo, então precísavamos mesmo daqueles litros de leite.
Eu, apesar da pouca idade, trabalhava como servente de pedreiro aos finais de semana com meu tio. Tinha ido receber os trocados que recebia como paga.
Até aí tudo bem, estava acostumado com o caminho e aos 13 anos realmente não me importava de andar toda aquele distância por algo que, em valores de hoje, não devia ultrapassar uns 20 contos. Ainda mais porque eles salvariam o parabéns a você da Foo (esse é o nome dela, tem outro na certidão de nascimento, mas raramente o usamos).
A merda toda aconteceu na volta. Minha memória me trai aqui, não consigo lembrar o horário, mas já era noite.
E de repente tudo ficou ainda mais escuro. A energia elétrica tinha ido pro saco.
Já estava no meio do caminho, no pé do morro onde termina a Vila Matias e começa a Vila Formosa. Foi quando caí na besteira de olhar para trás. Não era uma quadra ou duas sem energia, era tudo até onde a vista alcançava. Estávamos (e isso eu só soube depois) no primeiro grande blecaute que o país sofreu.
Se os mais novos acham assustador o blecaute de 2009, imaginem num tempo em que as ruas eram habitadas apenas por ônibus e um ou outro taxi, onde quem tinha um fusca ou uma brasília era abastado e praticamente só os hospitais tinham geradores próprios.
Quando as pessoas que estavam nas ruas perceberam a extensão do apagão, começaram a correr. Alguns gritavam.
Na esquina, do outro lado da Avenida João XXIII, alguém armado com um pedaço de pau começou a espancar um orelhão enquanto gritava palavras de ordem contra o então presidente José Sarney.
Enfiei a mão no bolso e segurei firme as notas da paga. Corri o mais rápido que pude e não parei até chegar em casa.
Nunca em minha vida senti tanto medo como naquela noite. Medo do escuro, medo de homens que saíam das sombras, medo de não ter leite no dia seguinte, medo de estragar tudo.
Naqueles milhares de metros em carreira, deixei pra trás muito mais do que a escuridão. Deixava ali também a minha infância e a minha capacidade de sonhar.
Muitas coisas contribuíram para que esse blog existisse. Já falei sobre elas aqui, mas me esqueci de um fato banal, acontecido há cerca de dois anos, que na época me deixou bastante contente mas que havia permanecido escondido nessa coisa maluca chamada memória e que só agora vem à superfície. Algo extremamente importante nessa minha caminhada nos quadrinhos.
Estava num sebo e começava a recobrar o gosto por colecionar esse troço a que chamamos de gibi quando encontrei Os Caçadores de Sonhos, de Neil Gaiman e Yoshitaka Amano (Editora Conrad, 2000).
Os mais puristas podem dizer que não se trata de quadrinhos. E, claro, estão cobertos de razão. Os Caçadores de Sonhos é um conto ilustrado. Mas é um conto de Sandman.
Quero que me digam um único cara que colecione Sandman e não o tenha em sua estante. Todos os fãs da epópeia do Senhor dos Sonhos conhecem a edição e são unânimes em afirmar que é uma das coisas mais lindas da saga.
Não a li de imediato. No mundo dos quadrinhos existem coisas que não valem nem uma leitura rápida num ônibus parado no trânsito. Outras, entretanto, não merecem ser lidas em tais condições. O livro de Gaiman e Amano pertence a segunda categoria.
Aguardei pacientemente 03 dias até que chegasse a sexta feira. Por volta das onze da noite minha esposa foi se deitar, ela trabalha aos sábados, eu não. Desliguei a TV, sentei-me no chão da cozinha, esquentei uma xícara de café e acendi um cigarro.
A leitura terminou as três da manhã. Muita coisa aconteceu naquele meio tempo.
Para quem ainda não conhece a história, Os Caçadores de Sonhos é baseado em um antigo conto japonês, traduzido para o Ocidente como A Raposa, o Monge e o Mikado dos Sonhos. Melhor seria dizer que se baseia em vários contos antigos, já que é um conto folclórico e, como tal, possui várias versões que se diferem entre si nos detalhes, nomes e lugares, mas que são semelhantes em sua essência. O conto fala sobre uma raposa que se apaixona por um solitário monge. No caminho desse amor impossível encontraremos um poderoso e atormentado feiticeiro que fará de tudo para encontrar a paz, inclusive matar.
É surpreendente saber que a história existe há centenas, talvez milhares de anos, pois as coincidências com o mundo criado por Gaiman para sua versão de Sandman não são poucas. O que prova a tese que as histórias estão por aí, assim como os pensamentos, basta que alguém entre na mesma sintonia e elas acontecerão.
E é essa sintonia que temos a rara oportunidade de presenciar na obra de Gaiman e Amano.
Não vale aqui contar mais sobre a história. Ela é simples e desconfio que uma rápida busca no Google possa entregar muito mais do que eu ousaria. Vale a pena sim contar um pouco do que ela revela.
Os Caçadores de Sonhos trata, principalmente, de onde até o amor pode chegar.
A raposa começa sua história tentando enganar o abnegado monge. Um ardil, uma trapaça para corromper uma alma, afinal, as raposas, em toda a história da humanidade, em milhares de contos de fadas, sempre foram associadas a astúcia e ao orgulho.
Mas o caráter dúbio da raposa, tantas vezes contado em prosa, não foi esquecido no conto japonês. Como na vida, o tiro sai pela culatra e a raposa, antes sedenta por ludibriar o monge, percebe suas qualidades e se apaixona.
E aí entra o talento narrativo de Gaiman e a explosão visual que são as ilustrações de Amano. Não é incorreto dizer que o inglês e o japonês conseguiram a façanha de traduzir para nosso tacanho e pragmático mundo ocidental as sutis metáforas tão comuns nas milenares histórias orientais.
Afinal, somos meio cegos e limitados nesse sentido, como prova o processo de construção da civilização ocidental, pródigo em destruir tudo aquilo que não pode ser encaixado em nossa egoísta visão de mundo, inclusive os sonhos.
E são essas sutis metáforas que escondem a principal mensagem do conto: amar vale toda a viagem, viver e morrer por amor é apenas uma consequência natural da vida, pois tudo nasce, cresce e morre.
No fim, ao se cruzar aquela linha obscura entre a vida e a morte, independente do que digam as centenas de crenças religiosas, se haverá ou não um paraíso dos justos ou um julgamento final, o que fica são os sonhos que se distribuiu pela vida e o amor que sentiu por si mesmo e pelos outros.
A raposa, mesmo astuta, e o Monge, mesmo bondoso, aprendem isso da pior e da melhor maneira. E sofrem sim seu julgamento. Não o julgamento do Apocalipse, com seus terríveis anjos, trombetas e livros sobre nossos dias de vida. O julgamento mostrado em Os Caçadores de Sonhos é muito mais sutil e cheio de significado. O que é pesado ali é o que somos e o que pensamos, não o que fizemos ou deixamos de fazer.
Conceito complicado num mundo em que somos comandados pelo relógio e tememos mais o desemprego e o carinha do farol do que o Apocalipse.
Mas claro que o amor tem o seu antagonista. Nossa pragmática obviedade aponta imediatamente para o ódio.
E aí somos surpreendidos novamente pela sabedoria oriental. Não é o ódio o principal vilão dessa história, mas sim o medo. Quem ama nada teme, nem a vida, nem a morte. Já quem tem medo nunca encontrará o amor e, por analogia, jamais poderá viver ou morrer plenamente.
E o medo é personificado no poderoso Mestre de Yin-Yang.
Rico, temido, conhecedor de profundos segredos sobre o mundo dos vivos e dos mortos mas atormentado pelo medo.
E é o seu medo e sua incessante busca pela paz que o fará encontrar o monge e a raposa.
No conflito interno existente em cada um dos personagens, somos pouco a pouco transportados para um mundo aparentemente fantasioso, habitado por seres mágicos e espíritos atormentados.
Mas é esse mundo de fábulas que reflete muito daquilo que vivemos e sentimos nesse moderno século XXI. Sobretudo o medo tão comum em nossa sociedade e essa inexplicável incapacidade de amar as coisas, que nos leva a uma espiral violenta contra tudo e todos, atacando outros seres humanos simplesmente por acreditarem em outro deus, por possuirem outra cor de pele ou por gostarem de coisas diferentes daquelas de que gostamos.
Uma irracionalidade que nos leva a não mais ter fé na humanidade, a enxergarmos a miséria como algo comum e o ódio como virtude.
Nesse sentido, o desfecho do belíssimo Os Caçadores de Sonhos guardam um importante ensinamento. Uma lição que envergonhará aqueles que, como eu, encaram a literatura como reflexo da vida. A aqueles que acham que um livro (ou um gibi) não é mais que um monte de páginas costuradas ou grampeadas, Os Caçadores de Sonhos será um livro incompreensível.
Nunca poderemos precisar exatamente o momento em que deixamos de lado a beleza do mundo infantil e entramos nessa coisa maluca e egoísta a que chamamos mundo adulto. Eu escolhi o dia 17 de setembro de 1985 porque foi essa data que minha traiçoeira memória resolveu gravar. Com certeza meus sonhos começaram a morrer antes daquele blecaute. E só foram definitivamente enterrados algum tempo depois.
Mas é uma data tão boa quanto qualquer outra.
Assim como aquela madrugada, há cerca de dois anos, quando percebi que os sonhos e a beleza de se acreditar neles haviam voltado ao meu cotidiano.
E agradeci por existirem homens que se recusam a deixar de sonhar e produzem coisas como esse Os Caçadores de Sonhos.
Um livro capaz de despertar reflexões profundas sobre como vivemos e até onde queremos (ou estamos dispostos) a chegar.
Uma história sobre escolhas difíceis entre opções simples. Sobre o que fazer quando temos que nos decidir se escolhemos viver e amar ou se nos esconderemos o resto de nossos dias entre as franjas do medo.
Uma lanterna para as escuras estradas da alma.
Neil Gaiman e Yoshitaka Amano, munidos apenas de seus chouchins, iluminaram meu caminho de volta daquela tenebrosa noite de setembro de 1985.