sábado, 22 de janeiro de 2011

Yeshuah

yeshuah3

Paróquia de Nossa Senhora Aparecida, Vila Carrão, São Paulo. Ainda não eram nove horas da manhã de um domingo qualquer do começo de 1984. Cerca de 150 pessoas olhavam para aquele jovem franzino. Alguém ajeitava o microfone para aquela pouca altura.

Ele percebeu alguns olhares curiosos. Uma criança fazendo a leitura do Evangelho? Aquilo não seria muita ousadia?

O Padre Emilio decidira, alguns meses antes, aproveitar melhor aquelas jovens ovelhas das aulas de catecismo. Havia até permitido que alguns efetuassem as 1ª e a 2ª Leituras. Mas aquele era o Evangelho, a Leitura que precede à Homilia.

E uma criança o leria.

O moleque olhou a sua direita. O Padre Emilio lançou um olhar de cumplicidade. Na quinta fileira a sua esquerda enxergou sua mãe, ela lhe sorria orgulhosa. Sentada à sua frente, sua irmã torcia com aqueles olhos quase negros. Aquilo era tudo o que ele precisava.

– Evangelho de Jesus Cristo segundo Marcos, capítulo 3, versículos 13 a 19. “Jesus subiu a montanha e chamou os que ele quis; e foram a ele. Ele constituiu então doze, para que ficassem com ele e para que os enviasse a anunciar a Boa Nova, com poder de expulsar os demônios (…)”.

Foi a primeira vez que enfrentei uma platéia e fazia aquilo em nome de Deus. Eu tinha 11 anos e acreditava nEle de todo o meu coração.

Nunca tive problemas em falar em público. Sempre tive medo – tenho até hoje – mas isso nunca me impediu. O desempenho naquela leitura, as sutis nuances vocais e a teatralidade, me tornaram uma espécie de leitor oficial dos Evangelhos.

A beleza daqueles textos me levou a uma devoção cega e um comprometimento sincero. Fiz o Catecismo, Perseverança e o Crisma. As leituras em público me levariam ao teatro cinco anos depois. E o Teatro me tiraria definitivamente da Igreja Católica em 1992.

Tinha 21 anos e estávamos trabalhando num Encontro de Jovens. Haviam pessoas do Brasil inteiro. Na programação constavam 05 intervenções teatrais, todas elas com temáticas no mínimo contestáveis. Mas éramos jovens, cheios de energia e estávamos imbuidos dos ensinamentos daqueles padres torturados ou mortos durante o Regime Militar.

Após a 3ª intervenção – uma simulação da Guerra de Canudos – fui procurado por um dos padres que organizavam o evento. Lembro até hoje de suas palavras exaltadas:

- Estamos aqui para mostrar a Palavra de Deus a esses jovens, não para lembra-los da miséria humana. Não quero mais apresentações assim.

Peguei minhas coisas e saí. Só voltaria a igrejas para os casamentos de minhas irmãs e batizados de meus sobrinhos. Ou para olhar os santos, mas isso fazia pela arte, não pela Fé.

Aquele episódio criou em mim uma repulsa sistemática às Instituições Religiosas e comprometeu sobremaneira minhas crenças.

yeshua1Talvez por isso não tenha comprado Yeshuah: assim em cima assim embaixo, de Laudo Ferreira (e arte finalizado por Omar Viñole), na época em que foi lançado pela Devir Livraria.

Mas confesso que as críticas me deixaram curioso. Ainda assim não comprei.

E a história de Jesus de Laudo teve seu segundo volume lançado no ano passado (Yeshuah: o círculo interno o círculo externo). Quase fui no lançamento, mas algo me impediu.

Mas tem cada coisa que acontece na vida da gente…

Na semana passada Deus resolveu mandar novo dilúvio nessa impermeável capital paulista. Justamente na semana em que voltava de férias. Duas linhas de trens paradas, o que lotou o metrô e o fez funcionar em contingência por motivos de segurança, as principais vias de acesso para as zonas Leste e Norte alagadas, zona Oeste inundada em vários trechos. Milhares de paulistanos simplesmente não conseguiam voltar às suas casas.

Desci até a estação de metrô República e o intervalo entre um trem e outro era de cerca de dez minutos. Não havia lugar na plataforma. Assim como não rezo, por uma questão de coerência resolvi também não ficar de mal com Deus e preferi culpar o prefeito e o governador…

E me aproveitei da situação, é claro, e subi pra HQMix, que tava ali do lado.

Não sei por quê. Não me perguntem pois não tenho uma resposta razoável. Sei que saí do Gual com os dois volumes de Yeshuah. Simplesmente resolvi compra-los.

yeshuah2Mas Laudo não me dobraria tão fácil. Não a mim. Comprei, mas não leria…

Três dias depois saí apressado de casa e peguei a mochila errada, por acaso a mesma que levava no dia do tal dilúvio. Claro que nessas esqueci em cima da mesa o gibi que estava lendo. Pra piorar, o trânsito tava um caos. Mas o ônibus estava vazio e fui sentado.

E eu sempre leio no ônibus. Nem lembrava mais o que tinha dentro da bolsa, então abri e vi os dois volumes de Yeshuah. Aquilo só poderia ser uma piada de alguém lá de cima.

Comecei a leitura. Reli seis vezes as duas primeiras páginas, sem acreditar no que lia. Com apenas uma dúzia de quadros eu já sabia que tinha pela frente um gibi excepcional. Doze quadros com um poder narrativo quase hipnótico.

Será que minha teimosia tinha me privado por tanto tempo de um bom gibi? Tudo bem, não seria a primeira vez mesmo.

À medida que lia, percebi que Yeshuah não era o que eu imaginava. Por mais elogiosas que tenham sido as críticas eu ainda assim esperava um “gibi de padre”.

E o que recebi foi uma história como poucas, escrita com uma sinceridade impressionante e um esmero sem igual.

O Jesus concebido por Laudo não é aquele ao qual estamos acostumados. Definitivamente, pouco tem a ver com as representações massivamente difundidas no mundo ocidental de um rapaz loiro e de olhos azuis.

E não é por menos. Para um melhor entendimento de Yeshuah são essenciais as leituras do prefácio e do posfácio. E posso garantir àqueles que simplesmente ignoram essas partes que sua leitura vai transformar a história narrada no gibi numa experiência muito mais interessante.

A extensa pesquisa de Laudo inclui de tudo um pouco daquilo que foi dito, representado ou estudado a respeito de Jesus, ou melhor, Yeshu, já que os nomes originais em hebraico foram mantidos.

Para chegar a esse Yeshu, Laudo se baseou nos textos canônicos (aqueles que estão na Bíblia, os ditos Evangelhos), nos textos apócrifos (textos sobre a vida de Jesus que a Igreja não reconhece como oficiais), em diversos estudos de historiadores e teólogos e também em concepções artísticas diversas, como o belíssimo filme O Evangelho Segundo São Matheus, de Píer Paolo Passolini (considerado por muitos, inclusive da Cúria Romana, como um dos mais belos e sensíveis filmes sobre a vida de Cristo).

yeshuah4

Essa pesquisa, ao invés de criar uma história confusa, alienígena às nossas crenças (ou a falta delas), trouxe a tona um homem fascinante, que mudou de forma irremediável a história da Humanidade.

Nos trouxe um homem divino, por tudo o que foi e tudo o que transformou.

O primeiro volume compreende o período do nascimento de Yeshu até seu Batismo. O segundo volume mostra os primeiros tempos de pregação. O terceiro volume será publicado neste ano. Não há como estragar a surpresa contando o final, a história já é bem conhecida. O Homem morre na cruz e depois levanta dos mortos, essa parte todo mundo já sabe, resta saber como Laudo nos contará isso.

E a julgar pela forma como contou até agora…

A história é narrada por uma velha senhora. Não é preciso ser carola ou formado em teologia para perceber de quem se trata, mas seu nome ainda não é revelado.

No primeiro volume, o foco principal da história está centrado na figura de Miriam (Maria, mãe de Jesus) e nos adventos divinos que propiciaram o nascimento do Messias. É impressionante como essa primeira parte da história é feminina, materna. Laudo foi de uma felicidade incomum na concepção de sua Miriam, da criança virgem que pariu o Nazareno até a velha mãe (já no segundo volume) Miriam é uma mulher de verdade. Bem diferente daquela figura ensinada nas aulas de catecismo. Sua Miriam sofre, chora, sente raiva e medo. E ama seu filho, mesmo sem entender tudo o que lhe aconteceu.

Seu Yoseph ( José, o pai adotivo de Yeshu) também merece um destaque especial. Laudo criou um homem de seu tempo, com todos os defeitos próprios àquela região e formação cultural e religiosa, onde homens apedrejavam até a morte mulheres adúlteras e pouco contestavam a crueldade de tais atos. Mas ainda assim, esse Yoseph é um homem justo. Um homem bom. Que mesmo na dúvida mostrou-se nobre. E quando já não havia mais dúvidas, fez o que era necessário com coragem incomum.

E finalmente, nas páginas finais do primeiro volume, somos apresentados a Yeshu. Ainda não o conheceremos em sua totalidade, esse prazer foi reservado ao segundo volume.

E é do batismo de Cristo até o final de o círculo interno o círculo externo que somos apresentados a uma das melhores histórias em quadrinhos já feitas sobre Jesus.

O Yeshu de Laudo, como já disse, foi formado a partir de um mosaico de referências das mais diversas fontes. Ao invés de ferir o Jesus mostrado na Bíblia, a concepção do autor só nos faz entender melhor essa figura fascinante. Um homem capaz de transformar todos a sua volta.

Um homem que promove atos insanos a sociedade da época. Atos estranhamente insanos a essa nossa época, que foi moldada à partir de seus ensinamentos.

Um homem forte e doce. Alguém impossível de existir no mundo atual mas ainda assim alguém que você poderia encontrar na próxima esquina.

E se o encontrasse, você o seguiria até o fim do mundo.

Não se trata de um gibi, tampouco de religião. Yeshuah é um poema de amor e fraternidade.

O poder das imagens evocadas por Laudo assombram aqueles que lêem Yeshuah. Do nascimento de Cristo, passando pelo assassinato das crianças por Herodes (Hordus), até o retiro de Yeshu no deserto, o que temos são deleites visuais e momentos de emoção sincera, raras em se tratando de um gibi e mais improváveis ainda se lembrarmos que é uma adaptação em quadrinhos da história mais conhecida de todos os tempos.

yeshuah5

Mesmo em pequenos detalhes, geralmente protagonizados por coadjuvantes, podemos perceber a força das mensagens ali contidas. Da obstinação de Maria Madalena (Miriam Magdalit, essencial à trama) a rudeza de Simão Pedro (Shimon), do desespero de Yoseph diante do vazio absoluto aos olhos cegos de João Batista (Yohanán), nada é gratuito.

Se os Evangelhos fossem despidos de todos os pecados ocorridos na história da Humanidade, tão generosa em desgraças e assassinatos, em deturpação dos ensinamentos ali contidos e em tantas “guerras santas” (como se fosse possível ser santo um ato de ódio), esse Yeshu criado por Laudo numa narrativa gráfica estaria em perfeita harmonia com sua mensagem.

Terminei o 2º volume naquele mesmo dia. Ou melhor, na madrugada já do dia seguinte.

Mas como disse, tem cada coisa que acaba acontecendo com a gente…

Num determinado momento do 2º volume, Yeshu prega a seu povo. Uma cananéia o procura, numa passagem do Evangelho de Mateus bastante conhecida, e implora por sua ajuda.

Foram apenas duas páginas. Duas páginas de uma história que eu lembro de ter lido há muitos anos atrás, quando era jovem e ainda tinha Fé.

Ao terminar de ler a passagem, pela primeira vez em muitos anos, chorei copiosamente.

Não havia tristeza naquelas lágrimas, nem alegria. O que havia era apenas a reação a um momento de pura beleza. Uma emoção verdadeira, daquelas que não necessitam explicações.

Yeshua2Numa fração de segundo, me lembrei daquela primeira leitura, tantos anos antes, e da força da fé que tinha.

Da cumplicidade do Padre Emilio, do sorriso de minha mãe, mas principalmente, dos olhos grandes e quase negros de minha irmã.

E ao menos naquela fração de segundo pude saborear a Fé que julguei para sempre perdida.

Isso, para mim, resume toda a beleza contida nesse Yeshuah.

 

QaQ2Essa resenha também está disponível no Quadro a Quadro, novo site de notícias sobre quadrinhos. Não deixem de acessar.

domingo, 16 de janeiro de 2011

3ª Semana do Quadrinho Nacional–Ken Parker Blog

Matéria publicada em parceria com o Quadro a Quadro e o KPblog

Cartaz da 3ª Semana do Quadrinho Nacional

De 23 a 31 de janeiro, o Ken Parker Blog está promovendo sua 3ª Semana do Quadrinho Nacional.

Imagine você se tivesse a oportunidade de convidar vários desenhistas para reinterpretarem seu personagem de quadrinhos favorito. E melhor ainda, ao lado de um personagem brasileiro.

Foi essa a idéia que em janeiro de 2009 o baiano Lucas Pimenta propôs ao amigo e parceiro de blog João Guilherme. Juntos eles prepararam o convite e começaram a divulgação do evento que ocorreria durante a última semana de janeiro, em comemoração ao Dia do Quadrinho Nacional.

O Dia do Quadrinho Nacional é comemorado em todo 30 de janeiro, data em que – no já longinquo ano de 1869 – foi publicada NHÔ QUIM, a primeira história em quadrinhos brasileira, pelas mãos do brasileiríssimo italiano Ângelo Agostini – genial artista do século XIX, que deixou o Império de cabelo em pé com suas ferinas ilustrações e de quebra foi um dos precursores da Nona Arte.

Ken Parker, por WillInicialmente, seria uma celebração dos quadrinhos nacionais e uma homenagem a imortal criação de Berardi e Milazzo.

O que Lucas e João não esperavam é que já na primeira edição artistas de peso como Adauto Silva, Flavio Luiz e Will fossem contribuir com suas visões personalíssimas do herói, sempre acompanhado de um personagem brasileiro ou com alguma referência aos quadrinhos nacionais.

Ken Parker, por SpaccaA idéia pegou e gerou uma segunda edição em 2010. E para surpresa de todos, naquele ano, a participação foi ainda maior e contou com a colaboração de artistas badalados como Spacca e com a contribuição considerada um dos maiores orgulhos do evento: uma ilustração feita pelo genial Julio Shimamoto.

E agora o evento está de volta!

Para participar, basta preparar uma ilustração de Ken Parker ao lado de um personagem dos quadrinhos nacionais e encaminha-la até o dia 22 de janeiro para o e-mail kenparker.blog@gmail.com.

O Evento este ano também promoverá um concurso: o leitor que identificar o maior número de personagens no cartaz oficial (feito pelo Bira Dantas exclusivamente para a Semana) ganhará uma arte original do Bira, feita especialmente para o ganhador (ou ganhadores, em caso de empate). As respostas devem ser enviadas também para o e-mail kenparker.blog@gmail.com.

Então mãos a obra!

E vida longa a iniciativa do Ken Parker Blog.

O personagem na visão do Mestre Shima

sábado, 15 de janeiro de 2011

O Cavaleiro das Trevas: o melhor Batman de todos os tempos.

09Para quem curte o Morcegão, acabei de publicar uma matéria especial para o Quadro a Quadro, esquadrinhando um dos clássicos gibis da década de 80: O Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller.

Um verdadeiro divisor de águas na indústria dos comics norte americanos, O Cavaleiro das Trevas redefiniu o Homem Morcego e toda a forma de se fazer quadrinhos de super heróis.

Um clássico incontestável.

Acessem através do link http://quadro-a-quadro.blog.br/?p=1837.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Quadro a Quadro: indo até aonde a Nona Arte estiver!

Em junho de 2010, logo após o término do curso de roteiro de quadrinhos pelo SENAC, comecei a me corresponder com o amigo Lucas Pimenta, parceiro de aulas virtuais.

Baiano do bom, apesar da pouca idade Lucas já leu de tudo e se provou um grande conhecedor da nona arte.

Além de ter botado uma pilha danada na criação deste blog, ele me chamou na época para participar de um projeto de site sobre quadrinhos, o Quadro a Quadro.

No processo, fui apresentado aos amigos Sergio Barreto e Marcello Fontana – os idealizadores do Projeto junto com o Lucas, pai da criança - Portilho e Adalton – como eu, colaboradores – e a Eve – literalmente a mãe da criança, nossa Web Designer apaixonada por quadrinhos e salvadora nos momentos de asnice tecnológica. Nesse nosso clubinho de nerds, aos poucos o Quadro a Quadro começou a tomar forma.

Hoje, após sete meses desde o convite inicial, o Quadro a Quadro foi para o ar.

Não dá para mensurar nossa alegria. Então convido a todos a embarcarem conosco nessa viagem:

QaQ

O Quadro a Quadro não é apenas um site sobre quadrinhos. É um site para quem não esquece aquele seu primeiro gibi, para quem ainda canta a música de abertura do desenho de seu herói preferido ou que não se cansa de rabiscar no canto dos cadernos de escola. O Quadro a Quadro é um site para quem não tem medo de sonhar.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Os Sertões e a escola de Zebedeu

capasertoesbx

11 de Setembro de 1970, no picadeiro do Circo Irmãos Tibério, armado no Parque do Ibirapuera, centenas de pessoas acomodavam-se nas arquibancadas de madeira para assistirem o espetáculo O Evangelho Segundo Zebedeu, de César Vieira, com direção de Silney Siqueira e música de Murilo Alvarenga, levado a cabo pelo Teatro do Onze – um grupo de estudantes da Faculdade de Direito do Largo São Francisco.

O que se viu no palco naquela noite nunca antes se havia visto no teatro brasileiro. A história da peça de passava num circo, onde seria encenado o drama de Canudos. Mas o ator principal, Bibi Gestas, não pôde se apresentar e é substituido na última hora por Vicente, artista convidado.

E Vicente não decepciona seu público. Não demora muito a começar a desobedecer as deixas do “ponto” e a mudar o texto original. A vida de Antonio Conselheiro mistura-se à de Cristo, num auto da paixão com ingredientes sertanejos. O que deveria ser apenas uma encenação sobre a Guerra de Canudos torna-se um ato político dentro daquele circo fictício sob aquela lona real do Ibirapuera.

O espetáculo O Evangelho segundo Zebedeu ganhou o Brasil e o mundo. Recebeu todos os prêmios nacionais, foi aplaudido de pé no Festival de Teatro de Nancy, na França, foi publicado em mais de 15 países e reencenado a exautão nos últimos quarenta anos.

Também chamou a atenção para aquele grupo de estudantes audaciosos, o que resultou numa perseguição política poucas vezes vista a um grupo de teatro: censura sistemática, prisão e tortura de integrantes em 1973, depredações constantes às dependências do grupo e até ameaças de bomba, já no apagar das luzes do Regime Militar.

Mas o maior legado de Zebedeu foi mostrar ao público brasileiro toda a força política da Saga de Canudos.

É bastante provável que Carlos Ferreira e Rodrigo Rosa jamais tenham assistido a uma encenação do Evangelho. Entretanto seguiram por uma vereda estética bastante semelhante a de César Vieira para a confecção de Os Sertões – A Luta, adaptação em quadrinhos do clássico de Euclides da Cunha, lançada em dezembro pela Desiderata.

sertoesblog05Para horror dos puristas de plantão, os autores optaram por uma livre adaptação da última parte da obra – a Luta do subtítulo – usando-a como guia na narrativa e amparados por extensa pesquisa, inclusive de campo. Com isso, extraíram a essência do livro e o adaptaram com a liberdade peculiar das narrativas gráficas.

Tinha tudo para ser uma decisão ruim. Definitivamente não foi.

Os Sertões é um gibi histórico, uma livre adaptação de uma obra seminal em nossa literatura e um pesadelo narrativo e visual.

Para quem busca uma adaptação fiel ao livro, essa história do messiânico líder de Belo Monte é contada de forma apenas satisfatória.

E muito provavelmente os estudiosos da obra euclidiana torcerão o nariz.

Já para quem gosta de gibis e de histórias bem contadas…

Esqueçamos a boa educação ou a erudição própria dos críticos. Os Sertões é uma porrada na fuça de cabra metido a besta.

Narrativamente, o gibi trata com o respeito e rigor necessários o conteúdo e panorama históricos daquela recém criada – e por vezes amaldiçoada – República.

Por mais de uma vez as personagens situam o leitor sobre lugares, nomes e cargos dos homens do poder daquele final de século XIX. Deixa bastante clara também a intenção daquela República em relação aos fanáticos seguidores de Conselheiro e o perigo político que representavam, com aquela temerosa mania de acreditarem apenas em Deus e no destronado Imperador.

batal3pg2bxO apelo popular pela demonstração de força do Presidente Prudente de Moraes é abordado com fina ironia, assim como as desventuras do exército republicano, a quem os sertanejos de Canudos humilharam publicamente mais de uma vez.

Isso torna o gibi extremamente atrativo para o uso didático, seja para estudo histórico ou leitura complementar da obra original de Euclides da Cunha.

Mas como disse anteriormente, a opção estética utilizada pelos autores é o maior trunfo do gibi.

A solução narrativa utilizada por Carlos Ferreira para compilar as missões oficiais para desmantelamento de Canudos se tornou uma arma poderosa na arte de Rodrigo Rosa. O vai e vem temporal, contado através dos relatos de personagens dos dois lados da peleja e narrado por um inesperado Euclides da Cunha cria uma tensão crescente. E a cada momento narrativo, mais detalhes explicítos da ferocidade dos combates são mostrados.

E é nesse ponto que os autores, tal qual um Vicente de lápis e papel em mãos, começam a desobecer o “ponto”.

O gibi vai aos poucos introduzindo o horror e o pesadelo em quem o lê. Os diálogos, antes abundantes, vão dando lugar à narrativa gráfica pura e simples. A força das imagens e das situações vão se impondo de uma forma assustadoramente eficaz.

A crueldade e motivações do Exército e dos Sertanejos revelam uma guerra suja. O gibi não dá chance alguma ao leitor. O pesadelo e o desespero se instalam definitivamente e o efeito é devastador.

A sequência final possui 20 páginas antológicas e suas últimas páginas ainda guardam uma surpresa adicional aos leitores: foram preparadas intencionalmente, inclusive com tratamento gráfico distinto das demais, para despertar sensações terríveis naqueles que as lêem.

O pesadelo de Euclides da Cunha – a personagem, não o autor – já figura entre as melhores páginas de horror dos quadrinhos nacionais, lembrando os melhores momentos do gênero imortalizado por gênios como Colin ou Shimamoto. O Cristo carregado por Conselheiro e entregue ao Governo em um banquete funesto é uma das sequências mais impressionantes já vistas. É HQ de altíssima qualidade.

Não há pausa para retomada de fôlego pois, na sequência seguinte, temos Canudos incendiada. A página dupla causa exatamente a impressão que deveria: um massacre sem precedentes na história do país. E esse talvez seja o mais belo quadro da produção nacional em todo o ano de 2010.

Um gibi desses não é apenas entretenimento, é leitura obrigatória. Não importa se você o lerá com os olhos de um estudante de história ou de literatura, se apenas quer algo para ler no ônibus ou naquela viagem de férias num litoral chuvoso, Os Sertões é uma obra densa, com um ótimo roteiro e de uma beleza plástica única.

É bem possível que os estudiosos realmente torçam o nariz a essa livre adaptação, mas exatamente por se desprender do texto original e extrair o horror daquele conflito, dificilmente haverá um gibi mais fiel à obra de Euclides da Cunha do que esse Os Sertões – A Luta.

E em algum picadeiro perdido num tempo em que o Estado Brasileiro também cometia atrocidades inimagináveis, Vicente e todas as demais personagens de O Evangelho segundo  Zebedeu estão sorrindo com a audácia desses dois carinhas que resolveram fazer um gibi sobre a Terra Prometida de Belo Monte.

sertoesblog03