quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Onde fui amarrar meu bode…

Tem épocas na vida da gente em que tudo foge do controle, o caos se instala em nossa rotina e nada – absolutamente nada – parece dar certo ou depender de nossa vontade. Tive algumas épocas assim: a faculdade de Belas Artes, o período de serviço militar (obrigatório, diga-se), meu início de namoro com a Cátia…

Olhando hoje, parecem-me situações extremamente divertidas. Mas na época fiquei quase louco.

Pois bem, 2010 foi uma dessas épocas.

Não vou entrar em detalhes sobre o quanto fiquei maluco com o trabalho, em casa ou no teatro. Foi uma zona em muitos momentos, mas todos sobrevivemos.

Vou falar é de gibi. No caso, do Gibi Rasgado.

Há muito tempo minha esposa insistia para que eu voltasse a escrever. Pior, insistia para que eu fizesse um blog. Eu não dava nem bola. Não sei o motivo, simplesmente não queria voltar a escrever.

Cada vez mais insatisfeito e frustrado com o marasmo da minha pacata vidinha, resolvi dar uma arejada e me inscrevi em um curso à distância de roteiro de quadrinhos pelo SENAC.

O curso foi apenas satisfatório, mas o que ele desencadeou…

Foi no curso que conheci o Lucas Pimenta. Baiano do bom, entendedor de quadrinhos como poucos.

Ele leu a análise que fiz sobre A Noite dos Palhaços Mudos e começou a botar pilha. A Cátia leu as mensagens que ele me escrevia e os dois, nesse infernal mundo digital, começaram a me encher o saco pra fazer o desgraçado do blog.

E foi assim que o Gibi Rasgado nasceu. No começo com algumas crônicas também, ainda sem uma cara própria. Depois virou um blog de quadrinhos e só. E é o que ele é.

E onde um blog sobre gibis pode mudar a vida de um bancário modorrento? Pois bem, foi graças ao curso, ao blog, a Catia e ao Lucas que definitivamente voltei a me envolver com quadrinhos, após uma década fazendo apenas teatro.

E está sendo uma das melhores viagens que já fiz. E por incrível que pareça, de cabeça limpa.

No caminho cruzei com o mineiro Wellington Srbek, roteirista tarimbado no mundo dos quadrinhos e que já conhecia graças a sua parceria com o Mestre Colin em Estórias Gerais. Apesar da distância nos tornamos amigos e é outro cara a quem eu e o Gibi Rasgado devemos muito.

Srbek não é apenas um bom roteirista, é um ótimo ser humano. Daqueles com quem a gente sente orgulho de conversar.

Conheci também um bocado de gente bacana. Comecei a frequentar a HQMix e a bater papo com o Gual, a Dani e o Floreal, outros que sempre divulgam o Gibi Rasgado. No processo acabei conhecendo o Will, o Gustavo Duarte e um monte de gente que batalha todo dia para que esse negócio chamado quadrinhos funcione de verdade no Brasil.

O Lucas (que virou padrinho do blog e acabou ganhando um irmão paulista) me apresentou aos cangaceiros Marcelo, Serjão e Portilho, que juntos estão preparando o Quadro a Quadro, site especializado em quadrinhos que estréia em janeiro próximo.

Desses eu nem sei o que dizer. Conversamos todos os dias. Não dá pra mensurar o tanto que já aprendi. Além das sinceras gargalhadas.

Disseram que estou participando do Quadro a Quadro. Aimeudeusdocéu…

E nisso o blog foi tomando forma. O Roger Cruz colocou o Gibi Rasgado no topo de sua lista sobre o que foi resenhado sobre o Xampú. O Wellington já publicou duas matérias elogiando o Gibi Rasgado. As pessoas começaram a seguir e a colocar links também em seus blogs. O Gustavo Duarte postou no Twiter. O Mundo Digital ajudou a divulgar. E quando eu vi já tinha um monte de gente acessando, sugerindo, criticando e elogiando.

E aí eu percebi que a coisa estava totalmente fora de controle. E adorei isso.

Não tenho como pagar essa dívida.

Então resolvi agradecer a todos e ofereço minhas sinceras desculpas se me esqueci de alguém.

Para o ano que vem vai ter um monte de novidades: novo endereço (sem esse imbecil culto a personalidade aí da tua barra de endereços, onde já se viu um blog ter o nome de Lillo…), a estréia do Quadro a Quadro, talvez algum roteiro meu…

E algumas coisas não vão mudar: a graúna vai continuar por ali (nada mais coerente pra quem tem um Fradim tatuado no braço), continuaremos – por opção – sem patrocínio algum e as resenhas continuarão compartilhando minhas sensações sobre aquilo que leio…

O Gibi Rasgado volta em 10 de janeiro, porque eu também sou filho de Deus e pretendo passar os próximos dias olhando anjinho barroco e rezando em igreja com quase 300 anos.

Então a todos que visitam o blog semanalmente, àqueles que só entram de vez em quando ou mesmo quem está passeando por aqui pela primeira vez, um ótimo natal e um frutífero 2011.

Porque esse troço chamado gibi é uma das coisas mais sérias entre todas as coisas que dão prazer na gente.

Lillo – 23/12/2010.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Cicatrizes e Desespero

cicatrizes1

Todos temos cicatrizes. Qualquer serzinho de seis ou sete anos já tem uma coleção delas. Eu tenho, você tem, nossos pais tem.

Antes dos sete anos já tinha deixado minha mãe maluca: pedrada na cabeça, traumatismo craniano, atropelamento, uma dose generosa de soda cáustica confundida com açúcar (nessa quase virei adubo) e por aí vai.

Ainda conservo a cabeça amassada, pinos no pé, pontos no polegar e o péssimo hábito de ficar trombando em tudo. Faz parte da minha personalidade, é quase que uma propensão natural ao desastre doméstico.

Mas também existem outras cicatrizes que não são visíveis. Seus cortes são profundos e, em muitos casos, nunca se cicatrizarão.

Tive um pai talentosíssimo: escrevia e desenhava bem, articulado, era bom de bola, de papo e de mulher. E também de copo. E isso o levou primeiro a desgraça familiar, depois para o túmulo.

Minha mãe sempre foi amorosa, compreensiva e generosa. Mas pegou o touro à unha para criar os três filhos e transformá-los em algo diferente de sua própria tragédia.

Não vou entrar nesse mérito, mas todos temos cicatrizes. Algumas tão bem guardadas que a simples lembrança já causa desespero e dor.

stitchesE são exatamente esses sentimentos que embalam o belíssimo Cicatrizes, de David Small (Editora Leya, R$ 40,00 em média)

Aos quatorze anos, meninos ou meninas, nosso corpo é uma brincadeira de mau gosto. Sentimos coisas diferentes de tudo o que se sentiu até então, nossos hormônios explodem o desejo, a adrenalina não nos deixa dormir, se cresce muito em pouco tempo, um monte de pêlos começam a aparecer em lugares que pensamos que nunca teriam aquilo…

Se você tem essa idade, não vai entender o que vou falar agora, mas a festa de verdade começa aí, na adolescência.

Agora imagine você com essa idade exatamente na virada da página da história do século XX: a década de 50. Numa família estranha, com um pai omisso e uma mãe repressora, onde o silêncio era a Lei e todas as coisas importantes eram empurradas para debaixo do tapete.

E com uma porcaria dum caroço em seu pescoço, crescendo vagarosamente, te envergonhando, incomodando, te tornando alguém para quem as pessoas olham do jeito errado de se olhar alguém.

Até que chega o grande dia em que o bom doutor irá retirar aquele cisto.

Quando você acorda, descobre que foi-se o cisto e junto com ele sua voz e toda a vida que você conhecia – e que já não era lá das mais tranquilas.

Eu mal consigo imaginar o impacto disso num garoto de quatorze anos. Não era um cisto, era câncer. Causado pela ingenuidade médica de uma época, onde seu próprio pai teve um papel de destaque.

E ele descobriu sua doença da pior maneira.

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David Small produziu um dos gibis mais introspectivos da história. Um gibi construido à partir de sua própria dor. Página a página nos são oferecidas doses de rancor e ódio, de verdades escondidas e ações incompreensíveis. O que teria tudo para se tornar uma história chata e melancólica na verdade se tornou um gibi perturbador. E lindo.

Famoso ilustrador de livros infantis, Small utilizou sua apurada técnica para criar imagens esmagadoras, onde realidade e fantasia se misturam. Dos sonhos próprios da infância até a dor da descoberta de que essa mesma infância chegara ao fim, acompanhamos esse jovem David por caminhos sinuosos, na construção de um caráter forjado no desprezo de sua mãe e em seu silêncio forçado.

Um a um os segredos daquela família são desvendados. A loucura, a doença, a infelicidade, a frustração. Um passeio numa montanha russa desgovernada, com um dos trilhos quebrados bem na sua frente, ainda seria menos conturbada do que a vida daquele menino mudo.

E em nenhum momento – e aí está o principal truque da narrativa – Small caiu na tentação do estereótipo, do maniqueísmo. Seus personagens são complexos e dúbios como devem ser os seres humanos – e não poderia ser diferente. O mérito de Small foi captar, tanto no roteiro quanto nas belíssimas aquarelas, frações daquelas personalidades.

Cicatrizes não é apenas um bom gibi, é uma ótima história. Daquelas que enchem os olhos d’água. Poderia ser um filme, um livro, uma canção ou uma ladainha. Mas para nossa felicidade calhou de ser uma história em quadrinhos. E uma daquelas inesquecíveis, que serão discutidas, conversadas e apresentadas aos nossos filhos.

Algumas cicatrizes nunca serão apagadas de nosso corpo ou nossa memória e Small expôs as suas com uma honestidade surpreendente. Ler seu gibi, viver aquela adolescência trágica, é uma experiência única que nos faz ter um pouco mais de coragem para enfrentarmos nossas próprias poções de dor e desespero.

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