sábado, 24 de setembro de 2011

Cachoeira

Antes que alguém venha com qualquer risinho malicioso, confesso: sim, estou escrevendo essa resenha porque o André Diniz está lançando o seu A Cachoeira de Paulo Afonso (Pallas Editora – 64 páginas - R$ 30,00) neste mesmo fim de semana, lá na HQMix.

Mas este blog não é patrocinado por absolutamente ninguém (e pelamordedeus, vai continuar assim; de gente se intrometendo no que eu penso ou deixo de pensar já basta a minha mulher), então se eu não tiver um mínimo de senso de oportunidade é melhor parar de escrever crônicas e publicar sinopses prontas.

378_maxMas o fato é que o Gibi Rasgado ficou quase um mês sem atualizações e acho que uma boa maneira de desculpar-me com meu público (todos os 07 caras) é falando sobre um bom gibi.

E já faz um tempo que tava querendo escrever essa resenha. Só não aconteceu antes porque 1) eu tinha acabado de resenhar Morro da Favela e 2) o texto da resenha ainda não tinha chegado na minha cabeça.

Não me entendam mal, não é que eu não tenha gostado do gibi. Eu adorei! Só não sabia como escrever sobre ele.

E, claro, ainda não sei.

Mas arrumando (sem sucesso) a minha estante, tropecei numa pista daquelas…

Não me perguntem como esse gibi veio parar nas minhas mãos.  Em 2001 é que não foi. Na época em que foi lançado eu estava em outra pegada. Pensava e respirava teatro e quase não lia mais gibis.

Mas o mundo é um lugar esquisito e dez anos é muito tempo. As pessoas mudam. Outras não, só melhoram.

André Diniz é um daqueles raros roteiristas que não importa o que lhe caia nas mãos, ele fará um bom trabalho. O Quilombo Orum Aiê, Morro da Favela e agora A Cachoeira de Paulo Afonso que o digam. Poucas vezes se viu um roteirista emplacar tanta qualidade de forma consecutiva em assuntos tão diversos (o primeiro é ficcional com um pano de fundo histórico, o segundo é uma história verídica sensacional, contada de maneira belíssima, e o último uma adaptação de um ícone da literatura nacional).

E eu poderia perder horas inteiras falando em como esse carioca radicado em São Paulo conduz habilmente uma história. Mas prefiro voltar a aquele gibi de 2001 e que não faço a menor idéia de como ou onde o consegui: 31 de Fevereiro, uma das primeiras publicações da então recém31_de_Fevereiro fundada Editora Nona Arte, com roteiro e arte do próprio Diniz, que àquela época já não era nenhum aventureiro e trazia em seu currículo Fawcett (em parceria com Flávio Colin, o mais genial desenhista de quadrinhos brasileiros em todos os tempos) e a série Subversivos.

Um gibi bem escrito, com uma história pra lá de nonsense sobre Gilda, um ex-travesti que acaba de amargar uma temporada na cadeia. Passada num Brasil atemporal, que mistura passado e presente através de suas sórdidas semelhanças, 31 de Fevereiro esbanja talento narrativo e já mostra o afiado roteirista que conhecemos.

Mas com uma arte irregular. Quadros muito bons se alternam a outros apenas medianos, mostrando ainda um desenhista em busca de seu estilo.

Vence a qualidade do roteiro numa história pra lá de pirada.

Mas dez anos é muito tempo.

Não sei quem enfiou na cabeça daquele desenhista de 31 de Fevereiro que ele servia pra coisa. Seja quem foi o insano que aconselhou o André a continuar rabiscando, devemos a ele nossos mais sinceros agradecimentos.

A Cachoeira de Paulo Afonso é um dos mais belos trabalhos gráficos do ano e mostra um desenhista maduro, sofisticado, de um estilo único, expressivo e com um senso de equilíbrio absurdo na composição dos quadros.

Castro Alves escreveu alguns dos poemas mais marcantes de nossa literatura. Abusado, trouxe a arte para a vida real e defendeu abertamente o fim da escravidão. Sua obra é materia secundarista e vestibular. A estrutura e a temática de seus poemas são estudadas à exaustão nas Universidades Brasil afora. Um gênio.

Adaptá-lo para os quadrinhos?

Tarefa só pra gente grande.

E é por isso que A Cachoeira se torna um gibi tão delicioso. Quando o comprei, não duvidava nem um pouco que o roteirista André Diniz daria conta do recado. Aliás, depois de Morro da Favela eu não duvido de mais nada desse cara.

Mas estava curioso em saber como ele iria desenhá-lo.

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O que vemos em A Cachoeira são três aspectos bem distintos:

De um lado a força da poesia de Castro Alves, que mesmo romântica e envelhecida por quase 150 anos de evolução humana, ainda guarda um vigor e uma atualidade impressionantes, sobretudo na questão social e nos pesos e medidas que a justiça reserva a brancos e negros, a ricos e pobres, que hoje, como na história contada no século XIX, ainda é – apesar do que digam os causídicos – bastante parcial;

No outro lado vemos um roteirista que vem, ano após ano, se firmando como um dos melhores exemplos de habilidade narrativa de nossos quadrinhos. Prova irrefutável é o zeloso respeito e absoluta fidelidade que dedicou ao texto original. E ainda assim, a forma como decidiu contar a história, em como organizou e distribuiu os elementos narrativos nas 52 páginas do gibi mostram que mesmo as obras mais improváveis de nossa literatura podem ser adaptadas para os quadrinhos e ainda assim resultarem em gibis originais e envolventes.

E aqui devo abrir um parênteses: se André fosse cineasta e esse A Cachoeira um filme, muitos o estariam aplaudindo como uma obra prima do cinema nacional, mesmo que para ser filmado houvesse consumido rios de dinheiro público através de captação de verbas no imoral mecanismo da indecente Lei Rouanet, que transfere ao poder privado a decisão do que devemos ou não consumir baseados em seus próprios interesses de exposição de marca. Como é um gibi vão dizer que é só mais uma adaptação feita exclusivamente para entrar no PNBE…

E por fim, amarrando as duas pontas, temos o excelente desenhista André Diniz, que traduziu em imagens belíssimas o que existe no poema de Castro Alves.

Das páginas iniciais, que apresentam o ambiente e as personagens principais, até as 05 páginas finais, que reservam a redenção do casal numa sequência memorável, Diniz desfila uma desconcertante maturidade gráfica, com direito a quadros geniais, como o do narrador trepado no coqueiro, onde diálogo e imagem se confundem com as águas do Rio São Francisco, ou a sequência de ecos na cabana de Maria – quando o protagonista é levado à loucura, numa sucessão de quadros alucinantes, que reproduzem de forma impressionante uma das passagens mais dramáticas do poema original.

A Cachoeira de Paulo Afonso possui um roteiro excelente e extremamente bem executado, mas é sua arte que o torna excepcional.382_max

domingo, 4 de setembro de 2011

Histórias Inesquecíveis: A Melhor História do Homem Aranha

Publicada originalmente no Quadro a Quadro em 03/04/2011

HomemAranha19Você provavelmente nunca ouviu falar de Tim Harrison.

Ele não tem nenhum superpoder, não voa e não virou o inimigo mortal de ninguém. Mas ele é o responsável por uma das melhores histórias do Homem Aranha em todos os tempos.

Buscando na memória? Vou ajudar: Roger Stern foi o roteirista e Ron Frenz desenhou.

Não lembra? Não faz mal, você precisaria ter mais de 35 anos para lembrar.

Mas talvez você já tenha trombado com algum scan na internet ou com a republicação da Panini de alguns anos atrás. Ou talvez o nome da história ajude: “O Menino que coleciona Homem Aranha”.

Se você tem a minha idade e gostava do Cabeça de Teia na adolescência eu tenho certeza de que está sorrindo agora, com saudades de um tempo em que os quadrinhos norte-americanos começavam a amadurecer mas ainda não tinham se tornado essa confusão de mundos paralelos e sagas sem fim, que se emendam umas nas outras e duram anos.

Já se você tem metade da minha idade, deixa eu te contar uma história…

Eu tinha uns 12 anos naquela época. Eu ainda não sabia, mas aquele era o último ano da minha infância tal qual eu conhecia.  Logo depois estaria empregado, estudando a noite, namorando e todas essas coisas chatas que levam nossa vida pra um caminho sem volta. O estranho que quanto mais trilhamos esse caminho menos gibis encontramos espalhados pelo chão.

Mas naquele tempo eu ainda não pensava nisso.  Ficava contando os dias para que os gibis que eu colecionava chegassem  às bancas. Os tempos eram difíceis, meu pai estava desempregado e minha mãe trabalhava como ajudante no boteco do meu tio, já eu puxava lata de concreto nos finais de semana como auxiliar de pedreiro com um outro tio meu.

Puxava lata era modo de dizer, eu não tinha forças para tanto. Mas o pouco que fazia me rendia uns cruzados por mês. Não devia ser muito, no máximo uns cem reais em valores de hoje, mas servia pra ajudar a botar comida na mesa. Daquele dinheiro eu tinha autorização pra comprar 02 gibis: o Homem Aranha e o Incrível Hulk, os antigos formatinhos da Abril.

Então imaginem minha ansiedade.

A banca de jornal ficava a umas cinco quadras de casa. O chato é que eu praticamente lia o gibi todo no caminho de volta e tinha que ficar esperando um mês inteiro até o próximo.

Mas naquela tarde eu cheguei em casa chorando. Minha mãe, preocupada, perguntava o que tinha acontecido.

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Essa foi a minha resposta e acho que ela nunca soube o motivo do meu choro. Talvez descubra agora, se ler o Quadro a Quadro: naquela tarde eu chorava pelo Tim.

Tudo bem. Eu sou capaz até de chorar com uma receita de bolo, se ela estiver bem escrita. Mas “O Menino que coleciona Homem Aranha” foi a primeira história que me levou às lágrimas.

Exagero? Definitivamente não.

Após uma matéria do Clarim Diário, o amigão da vizinhança fica sabendo de um moleque chamado Timothy Harrison, um fã incontestável do Cabeça de Teia, que coleciona tudo o que diz respeito ao herói, desde os tempos de luta livre na TV.

O nosso herói resolve então visitá-lo.

Simples não é? Então por que tanta choradeira?

Porque essa é uma das histórias mais sensíveis que já li. Nós, fãs de quadrinhos, sempre tivemos dificuldades em aceitar a realidade. Quando crianças, não raro somos surpreendidos com pensamentos como: e se ele existisse de verdade?  E se eu fosse o Capitão América? E se a Mulher Maravilha fosse minha namorada? E se eu pudesse voar?

Exatamente por isso, um garoto que colecionava tudo do Homem Aranha era praticamente nosso irmão.

Poderia estudar na nossa escola e juntos discutiríamos as melhores histórias do Aranha, ou então brincaríamos com as clássicas (sem) action figures da Gulliver.

Mas calhou de Tim ser um personagem de história em quadrinhos e calhou de sair naquele HA19, no já distante ano de 1985.

Tim inevitavelmente cairia nas graças daqueles moleques que liam o gibi do Homem Aranha. Ele era praticamente a encarnação do que gostaríamos de ser.

Hoje, quase 30 anos depois, ainda lembro nitidamente da história, suas falas, os suvenires de Tim, a emoção legítima e o fim impiedoso (como impiedosa muitas vezes é a vida).

E é por isso que a história se tornou clássica. Apresentou-nos à realidade. Um choque para aqueles moleques acostumados a ver o Aracnídeo escapando das mais aterrorizantes situações. Naquela história, o Homem Aranha não venceu.

A quem não leu a história, Tim jamais chegou à idade adulta, ficou imortalizado naquele corpo de guri no início da década de 80.

E a quem leu, bem…

Quem leu jamais se esqueceu de Timothy Harrison.

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“O menino que coleciona Homem Aranha” foi publicada originalmente no Brasil em janeiro de 1985, na revista Homem Aranha nº 19, pela Editora Abril, e republicada pela Panini em 2007, no especial Marvel -40 Anos no Brasil.