A Editora Arx – um dos selos da Saraiva Editorial – lançouno ano passado a edição nacional de Frankenstein, publicação da espanholaParramón Ediciones e de autoria de Sergio A. Sierra e Meritxell Ribas.
Num mundo habitado por seres super poderosos, com músculos ecoxas turbinadas, em histórias com a profundidade de uma tampa de cervejaamassada no chão, publicar um gibi tão autoral é – para se dizer o mínimo – umato de coragem.
E é de coragem que o leitor precisa estar munido paraencarar a empreitada.
Coragem em se permitir uma experiência única em quadrinhos.
Frankenstein, todos sabem, é aquele cara feito de cadáveres,com parafusos no pescoço, monossilábico, retornado à vida por um cientistapinel e com uma força destrutiva sem precedentes.
Só que a definição acima – que até minha sobrinha de oitoanos sabe – não está, nem nunca esteve, na obra original de Mary Shelley,exceção feita à força sobre humana. Trata-se de uma percepção coletiva, produtode décadas de apropriação da Criatura de Frankenstein nas mais diversas mídias.
Mas não se enganem, jamais falarei mal do clássicoFrankenstein da Universal, com a inesquecível atuação de Boris Karloff, quepraticamente definiu o visual do monstrengo e plantou as bases de todas asoutras adaptações subseqüentes.
Acontece que o livro é bem diferente.
Frankenstein não é o monstro, mas sim o obstinado cientistaque recriou de cadáveres uma criatura única: um ser incompreendido e desprezado pela sua repugnante aparência, abandonadopor seu criador e condenado a viver solitário até o dia de sua morte. Umfilósofo putrefato, tão humano como eu ou você, sensível e comovente, cruel eodioso.
Para se ler o espanhol Frankenstein é necessário esquecertodos os desenhos e filmes que você já viu e tentar se lembrar daquelas poucaspáginas que leu – se leu – do romance original.
Digo poucas páginas porque eu mesmo tentei ler a obra trêsvezes, e sempre a abandonei por conta da decepção em perceber que aquele nãoera o Frankenstein que eu esperava.
Só fui concluir a leitura depois dos 30. E quando cheguei aofinal percebi que o livro não era chato, chata era minha insistência juvenil emesperar encontrar um filme de terror naquele livro fantástico, cheio demetáforas e críticas à sociedade do século XVIII, que começava a morrer sob aforte luz das magníficas novidades científicas e tecnológicas daquele séculoque se iniciava.
O álbum procura resgatar o sabor do romance original. Aoapresentar a história num meio de comunicação onde a personagem foi explorada à exaustão, corria orisco de parecer pretensioso ou, sendo ainda mais duro, se tornarincompreensível.
Não é o caso. Frankenstein é um álbum belíssimo, que podesoar, num primeiro momento, estranho aos nossos olhos tão acostumados a capasesvoaçantes, mas que numa leitura mais acurada e despojada, nos proporcionamomentos de prazer intenso.
É claro que 250 páginas de romance não cabem em 90 dequadrinhos. Mas o eficiente roteiro de Sergio A. Sierra dá conta do recado. Aopincelar os principais pontos cronológicos da história, Sérgio nos guia pelatrama, guardando para os diálogos pontos específicos sobre a contextualizaçãohistórica e científica da época, além de estruturar de forma convincente apersonalidade das personagens.
E se era fidelidade a obra original o que os autores sepropunham, isso é muito mais do que poderíamos esperar.
Mas tanto esmero dramatúrgico poderia ser um fiasco caso adesenhista resolvesse colocar aqueles benditos parafusos (desculpe Boris) na Criaturado Dr. Victor Frankenstein.
Mas não foi isso que Meritxell fez. Aliás, a arte dessa meninaé algo de outro mundo e merece um comentário à parte.
Meritxell se utiliza duma técnica de pintura chamada grattage.Lembram-se das aulas de Educação Artística na escola, quando a professora pediupra pintar um pedaço de cartolina com giz de cera, cobrir todo esse giz comtinta nanquim e depois mandou a gente desenhar sobre aquela superfície pretacom a ponta do compasso?
É mais ou menos por aí. E é claro que a arte de Meritxell em nada separece com aquelas casinhas e florzinhas do incompreensível “C” em nossoboletim.
A técnica, ao invés de limitar seu traço, lhe conferiu umaexpressividade bastante apropriada à amargurada e sombria história.
A luminosidade nos olhos das personagens chega a serfantasmagórica, os desenhos parecem ter vida.
Tudo é um deleite gráfico: do enquadramento das cenas aambientação (com um impressionante nível de detalhamento). A cena ao túmulo da esposamorta do Dr. Frankenstein é uma daquelas imagens que colam na retina e moem océrebro. Eu juro, a retratação da chuva na cena chega a respingar em nossosrostos.
E tem a Criatura...
Senhores peguem suas armas. Senhoras escondam suas crianças.
A Criatura de Meritxell dá medo. Não possui cicatrizes, nãoé desengonçada, não anda com aqueles braços de sonâmbulos e, claro, não se vênenhum parafuso em seu pescoço.
É um Frankenstein triste e comovente. E também perigoso.
Seus olhos vazios revelam todo o ódio causado pela suadeserção, seu corpo descomunal revela toda a desgraça que pode infringir.
É um monstro sem em nenhum momento tê-lo sido de fato. Umassassino que não nos mostra o sangue em suas mãos.
É a morte em vida, com toda a tristeza que essa afirmaçãocarrega.
Não se trata apenas de uma bola dentro, foi um gol de placada Editora Arx.
E tudo isso numa embalagem apropriada, com capa dura e papelde altíssima qualidade. E o melhor: com um preço pra lá de honesto. O que nosfaz desconfiar de algumas editoras que cobram o dobro por produtos com o mesmoacabamento.
A única ressalva à edição nacional é a falta de informaçõesbásicas sobre a edição original e seus autores – completamente desconhecidos dopúblico brasileiro. Umas 03 páginas a mais só fariam bem aos leitores.
Mas isso é um defeito perdoável numa publicação com tantasqualidades.
Como disse no começo, é de coragem que o leitor precisaestar munido para encarar a leitura de Frankenstein, pois se trata de um álbumraro.