domingo, 18 de julho de 2010

Minha primeira Calafrio

Olhando meus sobrinhos hoje em dia tenho sentimentosconflitantes. De um lado uma inveja danada, essas crianças tem tudo aquilo queeu nunca poderia sonhar na idade delas: videogame, computador, celular,brinquedo que fala, que anda sozinho, DVD com todos os desenhos preferidos parase ver e rever cinco mil e quinhentas vezes.
E a lista não pára, é enorme.
Não sei como o piralho do Vinicius (parece um anjo barroco omoleque) consegue naquela cabecinha de meia dúzia de anos absorver tanta coisa.
Confesso: é inveja.
Eu sei que é feio, mas eu já tenho quase quarenta, possoconviver com isso.

Por outro lado...

O ano era 1981 e eu ainda não tinha completado nem 09.
Íamos para Macaubal, cidade natal dos meus avós e onde meupai nasceu. Foi uma viagem inesquecível. Tá que acabei enrolado numa cerca de aramefarpado e tiveram que me tirar de lá na base do alicate. E também comi umpunhado de soda cáustica pensando que era açúcar e quase fui pro saco. E não éfigura de linguagem. Hoje, pensando nessas coisas, chego à conclusão que tenhouma grande parcela de culpa nos problemas de saúde da minha mãe.

Mas definitivamente não foi isso que mais me marcou naquelaviagem. Mesmo porque as situações acima eram quase que cotidianas naquela minhacurta vida e aqueles foram só alguns contratempos que me impediram de brincarpor um dia ou dois.

De São Paulo a Macaubal são mais de 500 Km. Viagem longa comduas crianças e a terceira querendo chegar. E entre as duas crianças estava eu,que não parava no banco do ônibus e tumultuava a vida dos meus pais.

Meu pai quando morreu me deixou de herança apenas um relógio– lindo, mas não funciona – uma máquina fotográfica Olympus – com o obturadorquebrado – e um par de abotoadeiras – essa é melhor nem comentar.

Mas entre essas poucas coisas que possuem valor apenassimbólico, ele deixou algo que eu nunca poderei pagar: o gosto pela leitura.

Foi ele quem me comprou o primeiro gibi. Foi também ele quemtrouxe num dia o Capitão América nº 07 e me apresentou um fantástico mundo desuper heróis, o que desgraçou minha vida para sempre, como já contei aqui.

Naquele dia, na Rodoviária, pouco antes de embarcar numaviagem de 8 horas, ele percebeu que a melhor maneira de controlar aquelediabinho loiro que as pessoas diziam que era seu filho seria passar antes numabanca de jornal. Quando descemos a escada para pegar o ônibus, minha mãesegurava pelas mãos minha irmã, meu pai estava escondido numa montanha de malase sacolas e eu tinha 03 gibis novinhos: um Capitão América, um Heróis da TV eum outro gibi grandão, com um nome esquisito e uma capa horripilante.

Eu ainda não sabia, mas tinha acabado de ganhar o primeiroexemplar de uma das maiores paixões que tenho em quadrinhos.

Meu pai acabava de comprar minha primeira Calafrio.

Eu não sei o ritmo de leitura das pessoas, mas eu, com ovocabulário limitado dos meus oito anos, devorei imediatamente a CapitãoAmérica antes da primeira hora.

(Mas não vale né? Essa série da Abril era bem fininha.)

Já Heróis da TV demorou um pouco mais. Meus pais estavamfelicíssimos. Até a primeira parada eu não havia aberto a boca, tão entretidoque estava nem queria descer do ônibus, fui sob protestos.

Acabada também a Heróis da TV meu pai começou a ficarpreocupado. Tinha mais umas 3 horas de viagem e eu já começava a ler o últimogibi.

Senhores, eu li e reli. E quando terminei de ler fiqueiolhando as figuras, página a página, fascinado.
Até ali, eu não sabia que existiam quadrinhos de terror.Pensava que eram só nos filmes que tínhamos monstros e fantasmas. Foi amor àprimeira leitura.
O demônio dos quadrinhos me pegou ali, naquela viagem, comaquela Calafrio nº 3.

Até hoje aquele nº é um dos meus gibis preferidos. Oexemplar original acabei doando para a Gibiteca. Recuperei-o apenas há algunsanos.

Foram 03 histórias das quais nunca me esqueci: Strega, nobelíssimo traço de Colonesse, Noite de Lua Cheia, uma história de apenas 02páginas sobre – claro – um Lobisomem, e A Árvore Maldita, uma das melhoreshistórias de terror que já vi na vida.

Strega é uma história de amor, ódio e assassinato. Colonessesempre desenhou belas mulheres, mas Strega é insuperável. Exuberante, despertaa paixão de um pintor e se torna sua musa. A obsessão o leva ao assassinato.
O corpo de Strega morta, acusando seu assassino, de olhosvidrados, é uma das imagens mais fortes da minha infância.

Noite de Lua Cheia teria passado despercebida. Mas eu estavano interior e naquela época as distâncias eram um pouco maiores e a imaginaçãodo populacho mais fértil. Aproveitei a história que acabara de ler no ônibus ea contei para os meus primos, como se fosse verdade e tivesse acontecido com opai de um amigo, ali no Cemitério da Vila Formosa, do ladinho de casa.
Orgulhoso do meu pequeno engodo, não esperava o que veio aseguir. Meus primos, excitados pela história que acabava de contar, resolveram tambémeles me contarem as suas.
Poucas vezes na vida passei tanto medo. Naquela noite dormino modesto sítio do meu tio, num breu total, com aquela janela de madeira quenão fechava. Eu tinha certeza que tinha um Lobisomem lá fora. E aí me deu aquelavontade louca de mijar. E é claro, o banheiro era uma daquelas casinhas afastadas, tão comuns no interior, praticamente do lado do Lobisomem...

Já a Árvore Maldita tem um dos roteiros mais bacanas que já vi.Conta a história de uma árvore assombrada pelo fantasma de um escravodecapitado. A única forma de acabar com a maldição seria encontrar a cabeça donegro e enterrá-la junto ao corpo.

Simples, original e assustadora.

O autor, embora na época eu nem ligasse para isso, é oprofícuo paraense Edmundo Rodrigues, veterano responsável por uma boa parcelada produção nacional entre as décadas de 60 e 90.

Seu traço elegante, sem firulas estéticas e com ângulosmuito bem enquadrados, se encaixa perfeitamente à boa história, também de suaautoria.

E aquela maldita árvore estava muito viva na minha cabeça(eu já tinha relido o gibi umas cinco vezes naqueles dias) quando, também anoite, voltávamos da casa de um outro tio.

Desnecessário dizer que esse outro tio morava longe de ondeestávamos hospedados.
E voltávamos eu, minha irmã e meus pais, lá pelas nove danoite, por uma estrada de terra. Só a luz da Lua iluminava o caminho.
Então, parado numa desgraçada duma árvore muito parecida coma da história, tinha um velho negro pitando um cigarro.
Ao passarmos por ele, como reza a boa educação, meu pai lhedeu boa noite.

O velho senhor respondeu naquela educação sincera de genteinteriorana.
Mas pra mim bastou. Saí correndo que nem o diabo, sem meimportar muito com os gritos da minha mãe.

Parei uns 50 metros a frente, ofegante.
Quando meus pais me alcançaram minha mãe torpedeou:

- Que foi isso de sair correndo menino?
- Era o João Velho mãe! Ele ia pegar a gente!

E para mim, os olhos daquele senhor eram os olhos ausentesdo escravo decapitado. E não houve cristão que tirasse isso da minha cabeça.

Aquela Calafrio honrava o título. Pelo menos para aquelegaroto de oito anos, que lia pela primeira vez uma história de terror.

Eu não sei os medos e fantasias que nossas crianças passamagora. Num mundo onde um simples jogo mostra coisas muito mais apavorantes doque aquele gibi, o Vinicius vai lá, dá enter e pronto: o monstro morreu.

Não tenho dúvidas que as crianças continuam enxergando seusfantasmas, criando seus mundos particulares, se apaixonando por mulheres dementira como eu me apaixonei pela Strega.

Mas naquele tempo o sobrenatural era palpável, assombras podiam se tornar qualquer coisa, e um gibi era a porta de entradapara outra dimensão.
E é esse mundo de fantasias, amores e horrores que me parece hoje irremediavelmente perdido paraas novas gerações.


4 comentários:

  1. Ótimo artigo, Lillo. Vou admitir que qdo guri eu era meio cagão para quadrinhos de terror. E minha experiência em viagens não foram muito boas. Lembra da Superpowers do Monstro do Pântano? Pedi para minha mãe comprá-la na banca da rodoviária e fui ler na viagem me deu um enjôo terrível. Acho que eu tinha uns 1o ou 11 anos. Só fui voltar a ler Monstro do Pântano e, em seguida, terror uns 10 anos depois.

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  2. Marcelo,
    O que tinha de mais legal em viagem quando criança era esse lance de gibi de rodoviária. Pena que vc teve esse problema com o Monstro do Pântano. Aliás você fez eu me recordar de um gibi bem bacana, que era o Superpowers. É impressão minha ou os gibis de agora não tem esse mesmo lance? Ou vai ver a gente era criança e esses gibis de linha tinham um outro sabor, né?
    Ah! E se você não conhece a Calafrio precisa conhecer. Pra mim só faltam 05 números.
    Abraços camarada.

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  3. O tema do blog são os quadrinhos, mas o motivo do comentário é outro. É para parabenizar novamente pela qualidade dos textos. Esse lance de se colocar no texto, sem se colocar na frente do assunto tratado, é algo muito bacana, que dá uma dimensão humana, para muito além da nostalgia. Sempre interessante e bom de ler. Parabéns, Lillo!

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  4. Valeu Wellington! Obrigado pelas palavras. Acho que o Gibi Rasgado tá começando a ter uma cara própria. Seu elogio só comprova isso. Esse texto, por ter um lance de resenha mas também de crônica, classifiquei na categoria Memórias de um Gibizeiro. Tá acompanhado daquele do Gaulês, que tem as mesmas características. São textos mais carregados no humor e com situações que ocorreram comigo. Ainda assim sem se esquecer que se trata de um texto sobre quadrinhos. Que bom que você gostou.
    Um super abraço!

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