“Quadrinho é minha cachaça”
Flávio Colin
Eu ainda era contínuo (um nome bacana para office boy) na Pecúnia Financeira, no centro de São Paulo. Tinha de 14 para 15 anos e estava fascinado por um cara que tinha acabado de sair nas bancas num gibi do Batman. Aquele gibi era uma das coisas mais alucinadas que eu lera até então. E aquele traço era fenomenal.
O tempo provou que Frank Miller, apesar das oscilações em sua carreira, é um gênio narrativo. E seu Cavaleiro das Trevas é um clássico incontestável.
Mas eu era uma criança e deixava me impressionar muito facilmente. Quando li o Cavaleiro das Trevas, embora não soubesse, já havia lido outros gênios. Jack Kirby e seu Quarteto Fantástico, Neal Adams naquele mesmo Batman, Lee Falk e Ray Moore no Fantasma, Al Capp e sua subversiva família Buscapé…
E um cara chamado Colin.
Mas como disse, eu era ainda uma criança. Nunca naqueles poucos anos de vida teria conseguido entender que o traço de Miller é uma brincadeira infantil frente à expressividade crua e cinza de Flavio Colin.
Só fui compreender isso quase duas décadas depois.
Flavio Colin foi – sem dúvida alguma – o maior gênio dos quadrinhos nacionais. Com seu estilo único e estilizado, desenhou de tudo: desde as aventuras policiais do “O Anjo”, no final da década de 50, até quadrinhos eróticos na gaúcha Grafipar, passando boa parte de sua produção entretido com histórias de terror (que ele mesmo confessou ser um de seus estilos preferidos).
Mas Colin, dizem os amigos, morreu entristecido. Amargurado por não ter condições dignas de trabalho e por não ter conseguido alcançar um de seus maiores sonhos, pelo qual lutou por toda a vida: uma indústria de quadrinhos legitimamente nacional.
Por quase 05 décadas, esse exímio narrador embalou a infância de pelo menos 03 gerações de leitores. Nos últimos anos de vida, sua produção – e a da maior parte dos grandes desenhistas nacionais – foi definitivamente ignorada em favor da publicação de materiais importados.
Mas o último ato desse espetáculo chamado Flavio Colin nos reservou uma cena belíssima, daquelas que nos comovem e dão a noção exata de tudo o que tínhamos e perdemos.
Srbek & Colin
Wellington Srbek é um jovem veterano. Apesar de seus 30 e poucos anos, o roteirista mineiro já tem uma década e meia de carreira. Sua produção independente destaca-se pela qualidade de seus roteiros, sempre intensos e muito bem costurados. O que ele faz em meia dúzia de páginas muita gente tarimbada não consegue em oitenta.
Seu último trabalho – Memórias Póstumas de Brás Cubas, em parceria com J.B.Melado – é uma aula de como se adaptar uma obra literária para os quadrinhos sem descaracterizá-la.
Não bastasse isso, Srbek proporcionou aos quadrinhos nacionais a oportunidade única de vermos Colin em sua melhor forma.
A parceria entre os dois durou de 1998 a 2002 e foi responsável por um álbum de 144 páginas e mais 04 histórias curtas.
E já começamos com um clássico dos quadrinhos nacionais: Estórias Gerais (Troféus Angelo Agostini de Melhor Roteirista e Melhor Desenhista de 2001, Troféus HQ MIX de Melhor Graphic Novel Nacional e Melhor Roteirista de 2001).
Mais do que um álbum de quadrinhos, é uma homenagem ao sabor brasileiro de se contar histórias. De Guimarães Rosa à brejeirice própria dos caboclos de nosso sertão, o roteiro de Srbek passeia pelo norte das Gerais do começo do século XX, com direito a jagunços, pactos demoníacos, matas fechadas com onças famintas, romances e mortes violentas.
Mas apenas a boa história não parece ter sido suficiente para esse talentoso roteirista. Ele escreveu toda a narrativa pensando unicamente no traço de Colin. Não serviria outro. Aquela era uma história para um desenhista em especial.
O resultado é simplesmente um dos melhores gibis brasileiros de todos os tempos. Colin não poupa talento, seus quadros possuem uma riqueza de detalhes raramente vista em qualquer outro artista. Mas não pensem que para isso ele “recheou” suas cenas com elementos decorativos. Sua virtuosidade reside exatamente em seu traço limpo, exuberante e minimalista. Basta conferir a cena do ocaso do vilão principal da história – Antonio Mortalma – com sua cabeça na bandeja da mucamba de quem desfrutara prazeres forçados na noite anterior. Poucas vezes se viu tanto ódio e desprezo materializados de forma tão genial num único quadro.
Finalizado em 1998 mas somente lançado em 2001, com o apoio da Prefeitura de Belo Horizonte, Estórias Gerais foi relançado em 2007 pela Conrad, dessa vez acompanhado de “Estória de Onça”, narrativa curta com um dos personagens da trama principal. Teve ainda uma edição espanhola em 2006.
"A Companhia das Sombras" (lançada em 2000 na revista Mirabilia – Troféu HQ MIX de Melhor Revista de Aventura & Ficção), "Uma Noite no Fim do Mundo" (lançada em 2001 na revista Fantasmagoriana - Troféu Angelo Agostini de Melhor Roteirista e Troféu HQ MIX - Melhor Graphic Novel Nacional) e "Admirável Novo Mundo" (lançada em 2002 na revista Mystérion) são 03 histórias de terror que se completam e melhoram ainda mais quando lidas em sequência, tamanha sua unidade narrativa.
03 histórias sobrenaturais passadas em épocas distintas, com seres imortais, representações bíblicas e folclóricas e uma boa quantidade de fantasmas: os roteiros de Srbek foram como um bom prato de tutu a mineira para o mestre Colin.
Vemos ali algumas das mais belas páginas de nossos quadrinhos de terror. A cena da Procissão das Almas em “Uma Noite no Fim do Mundo” é um deleite: centenas de almas desgraçadas, conduzidas por um padre morto, rumo a uma missa macabra e trágica. Cada detalhe do roteiro é multiplicado pela exuberante arte.
Em “A Companhia das Sombras”, temos em apenas 12 páginas uma das melhores histórias de terror dos últimos tempos. O Cortejo Fúnebre da história é magnífico, com destaque especial para a rastejante Preguiça (sim, aquela dos sete pecados capitais), uma visão impressionante.
Em “Admirável Mundo Novo” temos a última história produzida pelo Mestre Colin. Não percebemos sua idade naquelas páginas, não vemos sequer uma única pista de que aquelas seriam suas últimas ilustrações. O que vemos é um desenhista vigoroso, no esplendor de sua técnica, conduzindo o leitor por um Rio de Janeiro fantasmagórico do século XIX.
Colin escreveu em uma de suas inúmeras cartas a Srbek: “Você é o roteirista que sempre me faltou.”
Ao lermos a produção da dupla podemos perceber que as palavras do velho mestre não foram apenas uma lisonja ao parceiro. Em cada história, em cada quadro, percebemos algo sagrado numa história em quadrinhos: paixão.
Não são apenas histórias bem feitas, são algo vivo, orgânico, retorcendo-se sob os dedos de quem segura o gibi. Nunca antes se viu e infelizmente nunca mais se verá Colin tão a vontade em uma história.
É doce de leite com café forte, numa mistura saborosa e indecifrável.
Logo depois de “Admirável Mundo Novo”, Colin resolveu sair de cena, quase em silêncio. Não esperou os aplausos pois não guardava esperanças de que eles viessem. Tampouco a platéia entendeu que o espetáculo havia terminado. Apenas alguns raros espectadores e o pessoal da coxia perceberam o que aconteceu.
Num mundo perfeito – menos mesquinho e egóísta, onde o lucro fácil seria deixado de lado a favor do talento – Colin figuraria ao lado dos grandes gênios em qualquer lista de qualquer lugar do mundo. Sendo estudado e admirado como Eisner, Kirby ou Tezuka.
Mas isso num mundo perfeito. Nesse nosso cruel feudo editorial, apenas os familiares, os companheiros de trabalho – antigos como Shimamoto e Ota ou novos como Srbek e Diniz – acompanhados de antigos fãs, entenderam o tamanho da dor daquele 13 de agosto de 2002.
Eu tinha 14 anos quando fiquei impressionado com “O Cavaleiro das Trevas” mas demorei quase 20 para entender toda a genialidade daquele cara que eu lia nas revistas Calafrio e Spektro da minha infância.
Espero que as crianças que hoje facilmente se impressionam com mangás ou essas intermináveis séries mutantes sejam mais rápidas que aquele inocente adolescente de 1987 e tenham um dia o desprendimento de desfrutarem o prazer único de ler um verdadeiro gênio do traço.
Para saber mais sobre a dupla Srbek/Colin, acesse o marcador Flavio Colin, no Mais Quadrinhos.
Não deixe também de acessar a excelente entrevista com Flavio Colin publicada pelo Universo HQ.