Hoje eu não vou falar de quadrinhos. Quer dizer, vou. Mas não diretamente.
Vou falar primeiro de teatro.
Em fevereiro de 2000, após meses de insistência, César Vieira, fundador e diretor artístico do Teatro Popular União e Olho Vivo, ao telefone, pronunciou o que minha perseverança buscava ouvir:
- Ok! Dá um pulo aqui domingo pra conhecer o grupo.
Começava ali uma experiência que mudaria o rumo da minha arte e da minha vida. Um caminho sem volta que, por mais estranho que possa parecer, me levou até esse blog nesta noite, até o gibi que estou fazendo para a Editora Nemo e que também forjou o cara que sou agora.
O Teatro Popular União e Olho Vivo (TUOV, como o chamamos) não é um grupo qualquer de teatro. É outra coisa, por vezes inclassificável, mas que gravou à força e a sangue sua marca na história do teatro nacional nos últimos 50 anos.
A Origem
O Teatro Popular União e Olho Vivo – TUOV – tem suas origens no ano de 1966, quando das primeiras reuniões objetivando as encenações de O Evangelho Segundo Zebedeu e Corinthians Meu Amor, ambas de César Vieira.
Embora ninguém soubesse à época, César Vieira era o pseudônimo de Idibal Pivetta, advogado, que passaria os vinte anos seguintes defendendo presos políticos perseguidos pelo regime militar, um dos poucos com coragem para isso naquela época.
Em 1969 estreiou, pelo Teatro Casarão, a peça Corinthians Meu Amor. O espetáculo, devido ao seu tema, extrapolou a modesta sede do teatro na Avenida Brigadeiro Luiz Antonio e começou, sistematicamente, a se apresentar nas várias agremiações de nome “Corinthians” que existiam na década de 60.
Em 1970, por um grupo de estudantes da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, auto intitulado Teatro do Onze – uma alusão ao Grêmio Recreativo XI de Agosto, daquela instituição e ao qual era subordinado – estreiou o espetáculo O Evangelho Segundo Zebedeu, que contava a história da Guerra de Canudos através da linguagem de cordel.
O espetáculo renovou a cena teatral paulistana ao apresentar em linguagem popular um exercício metalinguístico até então pouco visto no Teatro Nacional: a peça narrava a Guerra de Canudos através de uma história que ocorria dentro de um circo e se apropriava de elementos religiosos para contar a messiânica aventura de Antonio Conselheiro; não bastasse isso a encenação ocorreu dentro de um circo de verdade, no Parque do Ibirapuera.
O sucesso foi imediato e o grupo, mesmo sendo amador, ganhou todos os prêmios nacionais naquele ano, além de representar o país no Festival de Nancy, na França.
Anos Difíceis
Em 1971, quando acabou a carreira dos dois espetáculos, diversos membros do Teatro Casarão foram integrados ao Teatro do Onze.
Começaram então os ensaios para a peça Rei Momo, que contaria a história do Brasil a partir da estrutura do Carnaval e propunha a eleição direta do Rei Momo do título, através de cédulas previamente entregues ao público.
O Espetáculo estrearia no ano seguinte e, novamente, foi convidado, pelo ineditismo de sua linguagem, a representar o país em outro festival internacional, desta vez o de WROCLAV, na Polônia.
No retorno, o Teatro do Onze se desvinculou do Grêmio Recreativo e começou a percorrer os bairros periféricos de São Paulo, já com o nome Teatro União e Olho Vivo.
A ousadia não passaria despercebida pelas autoridades militares que governavam o país. Em 1974 o Teatro União e Olho Vivo, após uma apresentação num colégio da Vila Prudente, foi surpreendido por agentes militares infiltrados no público e César Vieira – dramaturgo do grupo – ficou mais de 90 dias sob os “cuidados” do DOPS.
Apesar das ameaças constantes de novas prisões, o grupo continuou se apresentando nos bairros populares e, em 1978 estreiou a peça Bumba, Meu Queixada, contando as greves operárias ocorridas nas décadas de 50 e 60 em Contagem/MG e Perus/SP.
A feliz coincidência com o movimento operário que eclodia na mesma época no ABC paulista rendeu ao grupo alguns de seus melhores espetáculos, na sua imensa maioria encenados em sedes de sindicatos – clandestinas ou não.
No apagar das luzes do indecente regime político que vigorava no país, o Olho Vivo ainda seria protagonista de mais um incidente: teve, em 1984, a estréia de seu espetáculo Morte aos Brancos – A Lenda de Sepé Tiaraju adiada devido uma ameaça de bomba.
A denúncia anônima era clara: “vamos explodir essa merda de teatro subversivo e todos os que estiverem assistindo”.
A ameaça, depois de minuciosa investigação policial no local, se provou falsa e o espetáculo estreou no final de semana seguinte.
A Resistência Cultural
Com a redemocratização do país e uma guinada cada vez maior das artes em geral a um caráter quase que exclusivamente comercial, o Teatro União e Olho Vivo foi acusado por muitos de ser um grupo “ultrapassado” e representante de uma vertente teatral “em extinção”.
Apesar das críticas, o grupo continuou se apresentando nos bairros periféricos de S.Paulo e não alterou suas opções estéticas, apresentando uma opção popular de teatro, comprometida com a ética e em prol da cultura brasileira.
Entre 1991 e 1996 estreou mais dois espetáculos: Barbosinha Futebó Crubi – Uma Estória de Adonirans, contando a história do paulista Adoniran Barbosa, um dos maiores compositores nacionais, autor de Saudosa Maloca, Trem das Onze e outros imortais sucessos, e Us Juãos i os Magali, representando a tresloucada tentativa de fundação de uma república independente em São Jorge dos Ilhéus/BA, pelo gaúcho Sebastião Magali, no começo do Século XX.
A Descentralização da Cena Paulistana
No final dos anos 80 e começo dos 90, começaram em S.Paulo, inspiradas nas experiências do Teatro União e Olho Vivo e Teatro Vento Forte – grupo da capital paulista, liderado pelo incansável Ylo Krugli – diversas tentativas de descentralização da cultura, geralmente realizadas por jovens da periferia.
Foi então que surgiram importantes grupos, como a Brava Companhia, Teatro Pombas Urbanas – hoje uma fundação com um reconhecido trabalho social na Cidade Tiradentes, no extremo leste da Capital – e Cia S.Jorge de Variedades, entre outros.
O surgimento de tais grupos consolidou o trabalho iniciado nos idos de 1966 e criou uma importante rede de comunicação entre os coletivos paulistas na cena teatral da cidade, sobretudo na periferia, extremamente carente de iniciativas nesse sentido.
O Teatro Popular União e Olho Vivo ainda apresentou, entre os anos de 2001 e 2010, o espetáculo João Cândido do Brasil – A Revolta da Chibata, que narra a epopéia do marujo João Cândido Felisberto em sua luta pela abolição dos castigos corporais na Marinha de Guerra de 1910.
E é aí que voltamos à minha história dentro do Teatro Popular União e Olho Vivo, e onde teatro e quadrinhos se misturam.
João Cândido do Brasil – A Revolta da Chibata
Quando entrei no grupo, no início de 2000, ainda peguei a rabeira das pesquisas que resultariam no texto da peça sobre o Marinheiro que mudou a história do Brasil naquele começo de século XX.
Cheguei por lá antes da primeira cena ser escrita.
Eu era um dos poucos na época que possuíam computador em casa. Nada mais coerente portanto que eu fosse o encarregado de digitar os originais do César.
Atravessava as noites decifrando o caótico código de letras escritas com caneta de ponta porosa – a única que o César consegue usar, devido à grave artrose que tem nas duas mãos, fruto direto das torturas a que foi submetido na temporada em que passou na cadeia.
Eram vários cadernos, com xerox de matérias de jornais da época, desenhos e fotos, tudo devidamente anotado e comentado.
Entre os recortes, diversas cenas, rabiscadas, corrigidas, reescritas.
Digitei aquele texto inteiro pelo menos 03 vezes (ninguém fazia backup naquela época e os disquetes tinham o péssimo hábito de sumir do lugar onde foram guardados).
Tanto esforço me fez decorar cada uma das falas, de todas as personagens, tornando-me assim um dos profundos conhecedores daquele texto, de sua estrutura narrativa e de todas suas cenas.
O espetáculo estreiou em novembro de 2001, no Teatro Municipal de Santo André e é, sem dúvida, a mais longa e frutífera peça da história do grupo.
Percorremos diversos estados com o espetáculo. Frequentamos os principais festivais do país, entre eles o Festival Internacional do Recife e o Poá EmCena. Mas sobretudo, fizemos mais de 500 apresentações gratuitas na periferia de São Paulo.
Uma marca surpreendente.
O texto da peça foi lançado em livro pela Editora Casa Amarela, em 2003, e reeditado pela Prefeitura Municipal de Guarulhos em 2008, numa coleção que trazia também todos os outros textos do grupo.
Sobre o texto, prefiro transcrever as palavras do professor Antonio Cândido, um dos maiores nomes da Língua Portuguesa em todos os tempos e autor de Literatura e Sociedade, extraídas do prefácio da publicação de 2003:
“A escolha de César Vieira equivale a um convite para olhar a nossa história sem excluir os marginalizados pelas ideologias oficiais. Como sabemos, todas as providências foram tomadas para apagar da memória nacional a ação dos revoltosos de 1910 na Marinha de Guerra; para vilipendiar os seus participantes e tentar promover o esquecimento coletivo. Foi o que quase se conseguiu. Das franjas desse “quase” emergiram alguns homens lúcidos, como Edmar Morel, ou como o poeta surrealista francês Benjamin Péret, casado com brasileira, que esteve algum tempo no Brasil por volta de 1930, aqui militou na esquerda, aqui foi preso e viu apreendida e provavelmente destruída pela polícia a biografia que escrevera sobre João Cândido, intitulada O Almirante Negro. A eles se junta agora César Vieira, que recria a façanha de 1910 na chave da arte, jogando com a imaginação e a fantasia, que permitem realçar os traços da verdade. É o que faz essa peça por meio da música, da cor, do gesto organizado, da sátira, da indignação – dispostos em quadros sucessivos segundo um ritmo de vaivém no tempo, de maneira a modular uma espécie de grande parada histórica anticonvencional.”
E ainda a observação aguda do historiador Clóvis Moura (1925 – 2003) também autor de um dos prefácios, num de seus últimos textos publicados:
“Dizemos que é, por isso, uma obra de teatro e não da história, embora a essência dramática, lírica e política se reflita no espetáculo. Muitos dos seus personagens, assim, são recriados, muitos são criação do autor da peça para dar ritmo dramático à sua estrutura, mas todos autênticos teatralmente pela verossimilhança com a estrutura dramática da peça. Muitos personagens atuam como contraponto que ligam os diversos fatos e atos da peça numa unidade de ação contínua, como convém ao teatro. O trabalho de César Vieira e do seu grupo União e Olho Vivo é um exemplo de ação coletiva em função da conscientização social e artística do nosso povo.”
Pois foi a estrutura narrativa dessa peça e diversos personagens e situações ficcionais que surgiram também na publicação de 2008 da Editora Conrad:
Chibata! João Cândido e a Revolta que Abalou o Brasil, de autoria de Olinto Gadelha e Hemeterio.
Sobre os autores e a Editora Conrad nada direi. Eles já foram condenados da acusação de plágio em 1ª instância e possuem meios legais para contestar a decisão judicial.
Em relação ao Teatro Popular União e Olho Vivo, posso dizer que este é apenas mais um episódio em sua história. Triste, é verdade, mas apenas mais um episódio de um história de luta, perseverança e ética.
Já de César Vieira, a única coisa que posso dizer é que ele é o homem mais talentoso, corajoso, honesto e ético que tive o privilégio de conhecer. Prestes a completar 80 anos, é um homem que ainda acredita no ser humano e numa sociedade mais justa. Não é pouca coisa.
Aos leitores que acompanharam esta postagem até o final só posso dizer obrigado. E aconselhar que antes de tomarem partido para qualquer um dos lados, leiam as duas obras e tirem suas próprias conclusões.
No final de 2010, por questões pessoais, tive que me afastar temporariamente do grupo.
Ironicamente acabei aqui, escrevendo sobre quadrinhos.
O que não muda em nada a minha opinião, claramente expressa nesta postagem.
Lillo Parra – Blogueiro e roteirista de quadrinhos – ou, como sou conhecido no teatro, Will Martinez – ator popular.