Lá no finzinho dos anos 70 e começo dos 80, era comum eu acordar aos sábados pela manhã ao som de tiros.
Não, eu não morava numa zona de guerra. Era pobre e morava na periferia, mas naquele tempo até a periferia era uma outra coisa, não tinha tantos corpos.
O som dos tiros vinha da vitrola do meu pai (uma velha Philips, da série GF, som stéreo). O disco: O Melhor do Bang Bang à Italiana. Meu pai era um fã do gênero, cresci ouvindo os temas clássicos do Western Spaguetti, assistindo a filmes como O Dólar Furado e Por um Punhado de Dólares e lendo muitos gibis do Tex e do Chet – que eu nem sabia que era brasileiro, assim como não sabia que Tex era italiano.
E era fascinado por aquele mundo de homens duros, solitários e com o dedo rápido. Eu mesmo tinha uma colt de plástico, toda prateada, que disparava tiros de espoleta – num tempo em que brinquedos assim ainda eram coisa de criança.
E durante décadas aquelas paisagens inóspitas e sentimentos desoladores do oeste norte americano que os italianos criaram permaneceram adormecidos em minha memória. Isso até a semana passada…
Foi quando li o melhor gibi de bangue bangue em muitos anos. E ele não tinha cowboys, saloons e prostitutas decotadas, mas sim cangaceiros, vilas do fim do mundo e cabeças cortadas – muitas cabeças. Como a própria orelha do gibi diz, um bangue bangue à brasileira.
Estou falando de Bando de Dois, de Danilo Beyruth (Zarabatana Books, R$ 36,00 em média).
Danilo ficou bastante conhecido no mundo dos quadrinhos independentes com seu Neucronauta, uma espécie de salva vidas de almas – que começou sua carreira xerografado, com cara de fanzine, e que no ano passado teve toda sua trajetória reunida num álbum bem bacana pela HQM.
Mas nem o consolidado sucesso do original herói, nem o insuspeito talento de Beyruth deram qualquer pista sobre o que viria a seguir. Selecionado no PROAC (Programa de Ação Cultural) de 2009, pelo governo de São Paulo, sabíamos apenas o nome: Bando de Dois.
Desconheço a política de seleção do PROAC, parto do pressuposto que são caras honestos tentando fomentar a produção de quadrinhos nacionais. Sempre que sobra grana eu compro. Já tive uma ou outra decepção, mas também tive ótimas surpresas como Jambocks! (Celso Menezes e Felipe Massafera) e Joquempô (Rogério Vilela e Nelson Cosentino). Mas Danilo e seus cangaceiros acabam de nos mostrar o que realmente pode ser feito quando dão aos nossos artistas condições dignas de trabalho.
E já começa pela capa – uma das melhores que vi em meus 30 e poucos anos como leitor. A cabeça cortada do cangaceiro é um convite irresistível a leitura do gibi.
A premissa é simples: dois cangaceiros (o tal bando do título), sobreviventes de uma emboscada, partem em resgate das cabeças cortadas de seus antigos companheiros por motivos bastante distintos. Um, de nome Tinhoso, em dívida de honra com os fantasmas do bando chacinado, outro – Cavêra di Boi – para aproveitar a oportunidade que lhe foi oferecida com o extermínio de seus comparsas. No seu caminho uma volante (bandoleiros à serviço do governo) e o enorme sertão nordestino.
E isso é tudo o que o leitor precisa saber. Nada de pseudo teorias sobre a infância pobre na caatinga que transformou nossos (anti)heróis no que eles são. Nada de retratar a volante como corrupta ou desumana (artifício comum em qualquer abordagem sobre o cangaço). Em Bando de Dois as personagens são o que são. Simples assim.
E Danilo é um narrador habilidoso. A introdução da história ocupa 19 páginas e nos apresenta de uma só vez a motivação de cada um dos cangaceiros e a obstinação do comandante da volante. Fica a dúvida se os fantasmas vistos por Tinhoso são realmente obra do Além ou alucinação causada pela proximidade da morte. O leitor mais atento matará a charada ainda na introdução. Um pequeno detalhe, mas crucial para entender a motivação do outro cangaceiro, o Cavêra di Boi.
O resto do gibi é um deleite para os velhos fãs dos filmes de Sergio Leone: interceptação de trem, desertos intermináveis, cidades praticamente fantasmas, campanas, explosões e um final apocalíptico. E o que não existe no sertão foi substituído com categoria: sai o protestantismo e entra o catolicismo fervoroso do sertão, o saloon com seus copos de uísque são substituidos pelo balcão de bar e a boa e velha cachaça. E por aí vai…
Mas o grande trunfo da história repousa na capacidade narrativa de Beyruth. Alternando planos longos (muito bem retratados por quadros horizontais de duas páginas) com mudanças de ângulo vertiginosas, Danilo imprime ao gibi equilíbrio e ritmo. O efeito é devastador e pouco usual nas histórias em quadrinhos. Não se espante durante a leitura se estiver com a boca seca e a respiração presa, isso é fruto da habilidade do autor em trabalhar o conflito, criando uma expectativa crescente que só irá terminar na sequência final.
É claro que existem críticas, mas elas não são relevantes. A primeira que vi diz respeito ao sumiço de uma personagem (Zeca, aliado dos cangaceiros). Concordo, mas não acho que isso altere o ritmo da história ou a comprometa. Ele participa da história até o ponto que deveria participar, a única falha aqui foi sua descontinuidade sem uma explicação adequada.
Da outra eu sou obrigado a partir em defesa do autor: a integridade linguística das personagens. Em muitas passagens, o regionalismo na fala é substituído pela linguagem formal. Não acredito que isso seja uma falha. Sei que as personagens são nordestinas e sei que um cara que diz “ocê” (você) não diria no quadro seguinte “conseguir”.
Mas já li gibis que reproduziam em seus diálogos exatamente o modo de falar dos nordestinos. E o ritmo da leitura ficou totalmente comprometido. Acredito que Danilo usou o regionalismo apenas onde ele poderia ser utilizado sem comprometer a leitura, lembrando vez ou outra que nossos protagonistas são cangaceiros e estão no sertão. E entre a integridade linguística e o ritmo narrativo, fico com a segunda opção.
E como se não bastasse todas as qualidades do gibi em si, Bando de Dois ainda possui um site próprio, com direito a trilha sonora exclusiva e trailer. Se você ainda tem alguma dúvida sobre comprar ou não o gibi, acesse.
Não se produzem mais aqueles filmes de bangue bangue da minha infância e a velha vitrola do meu pai foi substituída pelo Itunes – algo que nem existe no mundo físico. Mas algumas coisas não mudam.
Uma boa história de bangue bangue é sempre uma ótima diversão, seja em que época for. E Danilo acaba de nos presentear com uma das melhores.