domingo, 26 de setembro de 2010

Por um cruzeiro furado e um punhado de cabeças cortadas…

Lá no finzinho dos anos 70 e começo dos 80, era comum eu acordar aos sábados pela manhã ao som de tiros.

Não, eu não morava numa zona de guerra. Era pobre e morava na periferia, mas naquele tempo até a periferia era uma outra coisa, não tinha tantos corpos.

bangO som dos tiros vinha da vitrola do meu pai (uma velha Philips, da série GF, som stéreo). O disco: O Melhor do Bang Bang à Italiana. Meu pai era um fã do gênero, cresci ouvindo os temas clássicos do Western Spaguetti, assistindo a filmes como O Dólar Furado e Por um Punhado de Dólares e lendo muitos gibis do Tex e do Chet – que eu nem sabia que era brasileiro, assim como não sabia que Tex era italiano.

E era fascinado por aquele mundo de homens duros, solitários e com o dedo rápido. Eu mesmo tinha uma colt de plástico, toda prateada, que disparava tiros de espoleta – num tempo em que brinquedos assim ainda eram coisa de criança.

E durante décadas aquelas paisagens inóspitas e sentimentos desoladores do oeste norte americano que os italianos criaram permaneceram adormecidos em minha memória. Isso até a semana passada…

Foi quando li o melhor gibi de bangue bangue em muitos anos. E ele não tinha cowboys, saloons e prostitutas decotadas, mas sim cangaceiros, vilas do fim do mundo e cabeças cortadas –  muitas cabeças. Como a própria orelha do gibi diz, um bangue bangue à brasileira.

Estou falando de Bando de Dois, de Danilo Beyruth (Zarabatana Books, R$ 36,00 em média).

necro_01Danilo ficou bastante conhecido no mundo dos quadrinhos independentes com seu Neucronauta, uma espécie de salva vidas de almas –  que começou sua carreira xerografado, com cara de fanzine, e que no ano passado teve toda sua trajetória reunida num álbum bem bacana pela HQM.

Mas nem o consolidado sucesso do original herói, nem o insuspeito talento de Beyruth deram qualquer pista sobre o que viria a seguir. Selecionado no PROAC (Programa de Ação Cultural) de 2009, pelo governo de São Paulo, sabíamos apenas o nome: Bando de Dois.

Desconheço a política de seleção do PROAC, parto do pressuposto que são caras honestos tentando fomentar a produção de quadrinhos nacionais. Sempre que sobra grana eu compro. Já tive uma ou outra decepção, mas também tive ótimas surpresas como Jambocks! (Celso Menezes e Felipe Massafera) e Joquempô (Rogério Vilela e Nelson Cosentino). Mas Danilo e seus cangaceiros acabam de nos mostrar o que realmente pode ser feito quando dão aos nossos artistas condições dignas de trabalho.

bd2E já começa pela capa – uma das melhores que vi em meus 30 e poucos anos como leitor. A cabeça cortada do cangaceiro é um convite irresistível a leitura do gibi.

A premissa é simples: dois cangaceiros (o tal bando do título), sobreviventes de uma emboscada, partem em resgate das cabeças cortadas de seus antigos companheiros por motivos bastante distintos. Um, de nome Tinhoso, em dívida de honra com os fantasmas do bando chacinado, outro – Cavêra di Boi – para aproveitar a oportunidade que lhe foi oferecida com o extermínio de seus comparsas. No seu caminho uma volante (bandoleiros à serviço do governo) e o enorme sertão nordestino.

E isso é tudo o que o leitor precisa saber. Nada de pseudo teorias sobre a infância pobre na caatinga que transformou nossos (anti)heróis no que eles são. Nada de retratar a volante como corrupta ou desumana (artifício comum em qualquer abordagem sobre o cangaço). Em Bando de Dois as personagens são o que são. Simples assim.

E Danilo é um narrador habilidoso. A introdução da história ocupa 19 páginas e nos apresenta de uma só vez a motivação de cada um dos cangaceiros e a obstinação do comandante da volante. Fica a dúvida se os fantasmas vistos por Tinhoso são realmente obra do Além ou alucinação causada pela proximidade da morte. O leitor mais atento matará a charada ainda na introdução. Um pequeno detalhe, mas crucial para entender a motivação do outro cangaceiro, o Cavêra di Boi.

O resto do gibi é um deleite para os velhos fãs dos filmes de Sergio Leone: interceptação de trem, desertos intermináveis, cidades praticamente fantasmas, campanas, explosões e um final apocalíptico. E o que não existe no sertão foi substituído com categoria: sai o protestantismo e entra o catolicismo fervoroso do sertão, o saloon com seus copos de uísque são substituidos pelo balcão de bar e a boa e velha cachaça. E por aí vai…

Mas o grande trunfo da história repousa na capacidade narrativa de Beyruth. Alternando planos longos (muito bem retratados por quadros horizontais de duas páginas) com mudanças de ângulo vertiginosas, Danilo imprime ao gibi equilíbrio e ritmo. O efeito é devastador e pouco usual nas histórias em quadrinhos. Não se espante durante a leitura se estiver com a boca seca e a respiração presa, isso é fruto da habilidade do autor em trabalhar o conflito, criando uma expectativa crescente que só irá terminar na sequência final.

É claro que existem críticas, mas elas não são relevantes. A primeira que vi diz respeito ao sumiço de uma personagem (Zeca, aliado dos cangaceiros). Concordo, mas não acho que isso altere o ritmo da história ou a comprometa. Ele participa da história até o ponto que deveria participar, a única falha aqui foi sua descontinuidade sem uma explicação adequada.

Da outra eu sou obrigado a partir em defesa do autor: a integridade linguística das personagens. Em muitas passagens, o regionalismo na fala é substituído pela linguagem formal. Não acredito que isso seja uma falha. Sei que as personagens são nordestinas e sei que um cara que diz “ocê” (você) não diria no quadro seguinte “conseguir”.

Mas já li gibis que reproduziam em seus diálogos exatamente o modo de falar dos nordestinos. E o ritmo da leitura ficou totalmente comprometido. Acredito que Danilo usou o regionalismo apenas onde ele poderia ser utilizado sem comprometer a leitura, lembrando vez ou outra que nossos protagonistas são cangaceiros e estão no sertão. E entre a integridade linguística e o ritmo narrativo, fico com a segunda opção.

E como se não bastasse todas as qualidades do gibi em si, Bando de Dois ainda possui um site próprio, com direito a trilha sonora exclusiva e trailer. Se você ainda tem alguma dúvida sobre comprar ou não o gibi, acesse.

Não se produzem mais aqueles filmes de bangue bangue da minha infância e a velha vitrola do meu pai foi substituída pelo Itunes – algo que nem existe no mundo físico. Mas algumas coisas não mudam.

Uma boa história de bangue bangue é sempre uma ótima diversão, seja em que época for. E Danilo acaba de nos presentear com uma das melhores.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Ao verme que primeiro roeu as frias carnes de meu cadáver…

Machado_de_AssisTinha 12, talvez já 13 anos quando li pela primeira vez Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Confesso, não entendi nada. Não que seja burro. Tenho até alguns neurônios (não muitos) que funcionam muitíssimo bem, obrigado. Mas dá uma olhada nisso:

Vinham tossidas estas palavras, às golfadas, às sílabas, como se fossem migalhas de um pulmão desfeito. Nas órbitas fundas rolavam os olhos lampejantes, que me faziam lembrar a lamparina da madrugada.

Que criança de 12 anos, estudante de escola pública, tem condição de decifrar uma sentença dessas? Eu estava lendo pela primeira vez Machado de Assis quando até então só tinha lido Capitão América e Heróis da TV e é claro que não entendi nada. Eu e toda a sala de aula, com excessão talvez da professora, embora eu tenha dúvidas quanto a isso também. E não vou entrar aqui na qualidade do ensino há 30 anos atrás. Pelo que vejo hoje nos cadernos das minhas sobrinhas, a coisa só piorou de lá para cá.

Já para depois dos 20 anos, quando havia me tornado um devoradorzinho de livros, reli Memórias Póstumas. E é claro que adorei.

Mas apesar de ter gostado muito e ter lido mais uns 05 ou 06 livros do autor depois disso, nunca me tornei um especialista na obra Machadiana. Então fico com a palavra dos estudiosos – que o consideram o escritor maior de nossa Literatura – e com a minha própria opinião: li vários, sem qualquer obrigatoriedade de trabalhos do ginásio ou das provas vestibulares, ou seja, li porque gostei.

E é por isso que aguardava ansiosamente a adaptação em quadrinhos de Memórias Póstumas de Brás Cubas, por Wellington Srbek e J.B.Melado (Desiderata, R$ 39,90 em média).

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Srbek, como já disse em outra postagem, é um daqueles caras inclassificáveis. Seu blog – o Mais Quadrinhos – é uma aula sobre HQ. Tem postagens sobre tudo o que é relacionado a quadrinhos, com uma opinião sempre muito bem embasada e coerente. Além de ser um sujeito educadíssimo, que responde todo e qualquer comentário e nunca se desvia das perguntas que lhe são feitas. Para quem, como eu, é amante de quadrinhos e ambiciona entrar no ramo, seu blog não só é uma parada obrigatoria, é uma sala de aula virtual.

Já havia lido do autor o belíssimo Estórias Gerais – em parceria com o mestre Flavio Colin – além de Solar, Muiraquitã e a série institucional Pratique Gentileza. E exatamente por saber de sua qualidade como roteirista que não via a hora do lançamento de Memórias Póstumas.

E não me decepcionei. Como disse, não sou um especialista da obra Machadiana, não sei citar de memória qual obra pertence a qual período do autor e não tenho capacidade técnica para dimensionar ou reconhecer as influências que exerceu sobre a arte brasileira desde então. Mas sei o que é um bom gibi ou uma boa adaptação.

A lógica é simples. Em qualquer adaptação em quadrinhos de uma obra literária – ainda mais um clássico dessa monta – algumas questões básicas devem ser respondidas:

1. Funciona como gibi?

Se não funcionar, pare a leitura na hora. Você não está lendo uma adaptação, está lendo um gibi ruim.

2. Respeita a estrutura da obra original?

Essa também é fácil, até para quem não leu o livro. Se você passou pela primeira pergunta é sinal que leu o gibi. Então vá até uma livraria qualquer – ou mesmo um sebo – e procure a obra original. Dê uma disfarçada, como quem não quer nada e comece a folhear o livro, sem pretensão, passando os olhos pelos parágrafos, se detendo um pouco no final. Se você encontrar nessa rápida folheada pelo menos meia dúzia de situações similares ao gibi que acabou de ler, fique tranquilo, você não foi enganado.

3. O gibi respeita a essência da obra original?

Essa é um pouco mais complicada, pois você precisa ter lido a obra ou, ao menos, alguns outros livros do mesmo autor. E com um agravante: roteirista e desenhista devem trabalhar a história dentro do mesmo clima e estilo do autor original. Do contrário não é uma adaptação, é uma livre adaptação, uma releitura.

E o Memória Póstumas de Brás Cubas de Srbek e J.B Melado responde a todas essas questões com louvor.

O que li no gibi rememora exatamente o que lembrava do livro, lido há mais de 15 anos, e prova que Srbek extraiu exatamente aquilo que era essencial à compreensão da obra original. Não sejamos ingênuos a ponto de achar que 160 capítulos de boa literatura, acondicionados em média em 200 laudas de letras corridas, caberão em 78 páginas desenhadas. Se fosse uma transposição literal, o gibi deveria ter uns 06 volumes de 150 páginas e, convenhamos, seria um saco de se ler.

Mas toda a ironia e hipocrisia da obra original ali estão. Destaque para os amores de Brás Cubas. A cena do ápice do amor entre Cubas e Virgília é tão bela no gibi quanto é no livro. Ao amalucado  Quincas Borba e ao seu insano Humanitismo também foram dados o merecido espaço.

A linguagem original foi respeitada, embora com pequenas adaptações – sempre necessárias nesse tipo de trabalho – afinal, é uma história em quadrinhos. Lembram-se da primeira questão? Pois é, tem que funcionar como um gibi, que é uma mídia muito mais rápida e direta do que o texto escrito.

MEMRIA~2Por fim, o estilo de J.B.Melado (confira ao lado) capta muito bem o clima reflexivo da obra original. Não dá para imaginar Memórias Póstumas como um mangá ou ainda no estilo anabolizado dos “super” estadunidenses. Sua arte é correta, calcada num estilo mais expressivo, com uma paleta de cores belíssima. O que torna o gibi atraente para crianças e para adultos.

O grave defeito de Memórias Póstumas: chegou com 30 anos de atraso. Se eu tivesse lido o gibi antes do livro, talvez minha compreensão tivesse sido muito melhor e não teria demorado mais de uma década para a releitura. E minha 6ª série teria sido um pouco mais tranquila…

Esse é um defeito que nossos educadores, se despidos de seus preconceitos, poderão corrigir parcialmente daqui em diante. Pois a quantidade de adaptações de qualidade que existem em nosso mercado já justificam um olhar mais atento para as inúmeras possibilidades de utilização dos quadrinhos em salas de aulas.

Memórias Póstumas é mais uma prova disso, além de ser também um baita dum gibi.