Quando crianças, somos capazes de coisas incríveis.
Faz parte da natureza humana a invenção, a criatividade, o sonho. E é nas crianças que isso se revela em sua forma mais pura e devastadora.
A imaginação de uma criança é capaz de tudo. E se o tudo não for o suficiente ela é capaz de ir além.
Mas crescemos e em algum momento de nossas vidas algo se quebra em nossa mente infantil. É geralmente o momento em que também começamos a crescer.
Algo sutil, que quase nunca podemos precisar quando e onde acontece. Mas é ali que iniciamos a demolição de todo o mundo idílico de nossa imaginação e começamos a nos tornar adultos.
E essa é uma das vantagens de envelhecer. A memória se apura com a idade e coisas vem à tona. Geralmente as coisas que merecem ser lembradas.
17 de setembro de 1985. Falando assim parece apenas uma data. Era uma terça feira à noite e eu tinha acabado de completar 13 anos. Lembro muito bem porque tinha andado a pé 05 km até a casa da minha tia, no outro lado do morro que é a Vila Formosa, zona leste de capital paulista.
Não tínhamos mais nenhum dinheiro em casa e minha irmã mais nova precisava de leite na manhã seguinte. E mais: ela completaria quatro anos naquela manhã e minha mãe queria fazer um bolo, então precísavamos mesmo daqueles litros de leite.
Eu, apesar da pouca idade, trabalhava como servente de pedreiro aos finais de semana com meu tio. Tinha ido receber os trocados que recebia como paga.
Até aí tudo bem, estava acostumado com o caminho e aos 13 anos realmente não me importava de andar toda aquele distância por algo que, em valores de hoje, não devia ultrapassar uns 20 contos. Ainda mais porque eles salvariam o parabéns a você da Foo (esse é o nome dela, tem outro na certidão de nascimento, mas raramente o usamos).
A merda toda aconteceu na volta. Minha memória me trai aqui, não consigo lembrar o horário, mas já era noite.
E de repente tudo ficou ainda mais escuro. A energia elétrica tinha ido pro saco.
Já estava no meio do caminho, no pé do morro onde termina a Vila Matias e começa a Vila Formosa. Foi quando caí na besteira de olhar para trás. Não era uma quadra ou duas sem energia, era tudo até onde a vista alcançava. Estávamos (e isso eu só soube depois) no primeiro grande blecaute que o país sofreu.
Se os mais novos acham assustador o blecaute de 2009, imaginem num tempo em que as ruas eram habitadas apenas por ônibus e um ou outro taxi, onde quem tinha um fusca ou uma brasília era abastado e praticamente só os hospitais tinham geradores próprios.
Quando as pessoas que estavam nas ruas perceberam a extensão do apagão, começaram a correr. Alguns gritavam.
Na esquina, do outro lado da Avenida João XXIII, alguém armado com um pedaço de pau começou a espancar um orelhão enquanto gritava palavras de ordem contra o então presidente José Sarney.
Enfiei a mão no bolso e segurei firme as notas da paga. Corri o mais rápido que pude e não parei até chegar em casa.
Nunca em minha vida senti tanto medo como naquela noite. Medo do escuro, medo de homens que saíam das sombras, medo de não ter leite no dia seguinte, medo de estragar tudo.
Naqueles milhares de metros em carreira, deixei pra trás muito mais do que a escuridão. Deixava ali também a minha infância e a minha capacidade de sonhar.
Muitas coisas contribuíram para que esse blog existisse. Já falei sobre elas aqui, mas me esqueci de um fato banal, acontecido há cerca de dois anos, que na época me deixou bastante contente mas que havia permanecido escondido nessa coisa maluca chamada memória e que só agora vem à superfície. Algo extremamente importante nessa minha caminhada nos quadrinhos.
Estava num sebo e começava a recobrar o gosto por colecionar esse troço a que chamamos de gibi quando encontrei Os Caçadores de Sonhos, de Neil Gaiman e Yoshitaka Amano (Editora Conrad, 2000).
Os mais puristas podem dizer que não se trata de quadrinhos. E, claro, estão cobertos de razão. Os Caçadores de Sonhos é um conto ilustrado. Mas é um conto de Sandman.
Quero que me digam um único cara que colecione Sandman e não o tenha em sua estante. Todos os fãs da epópeia do Senhor dos Sonhos conhecem a edição e são unânimes em afirmar que é uma das coisas mais lindas da saga.
Não a li de imediato. No mundo dos quadrinhos existem coisas que não valem nem uma leitura rápida num ônibus parado no trânsito. Outras, entretanto, não merecem ser lidas em tais condições. O livro de Gaiman e Amano pertence a segunda categoria.
Aguardei pacientemente 03 dias até que chegasse a sexta feira. Por volta das onze da noite minha esposa foi se deitar, ela trabalha aos sábados, eu não. Desliguei a TV, sentei-me no chão da cozinha, esquentei uma xícara de café e acendi um cigarro.
A leitura terminou as três da manhã. Muita coisa aconteceu naquele meio tempo.
Para quem ainda não conhece a história, Os Caçadores de Sonhos é baseado em um antigo conto japonês, traduzido para o Ocidente como A Raposa, o Monge e o Mikado dos Sonhos. Melhor seria dizer que se baseia em vários contos antigos, já que é um conto folclórico e, como tal, possui várias versões que se diferem entre si nos detalhes, nomes e lugares, mas que são semelhantes em sua essência. O conto fala sobre uma raposa que se apaixona por um solitário monge. No caminho desse amor impossível encontraremos um poderoso e atormentado feiticeiro que fará de tudo para encontrar a paz, inclusive matar.
É surpreendente saber que a história existe há centenas, talvez milhares de anos, pois as coincidências com o mundo criado por Gaiman para sua versão de Sandman não são poucas. O que prova a tese que as histórias estão por aí, assim como os pensamentos, basta que alguém entre na mesma sintonia e elas acontecerão.
E é essa sintonia que temos a rara oportunidade de presenciar na obra de Gaiman e Amano.
Não vale aqui contar mais sobre a história. Ela é simples e desconfio que uma rápida busca no Google possa entregar muito mais do que eu ousaria. Vale a pena sim contar um pouco do que ela revela.
Os Caçadores de Sonhos trata, principalmente, de onde até o amor pode chegar.
A raposa começa sua história tentando enganar o abnegado monge. Um ardil, uma trapaça para corromper uma alma, afinal, as raposas, em toda a história da humanidade, em milhares de contos de fadas, sempre foram associadas a astúcia e ao orgulho.
Mas o caráter dúbio da raposa, tantas vezes contado em prosa, não foi esquecido no conto japonês. Como na vida, o tiro sai pela culatra e a raposa, antes sedenta por ludibriar o monge, percebe suas qualidades e se apaixona.
E aí entra o talento narrativo de Gaiman e a explosão visual que são as ilustrações de Amano. Não é incorreto dizer que o inglês e o japonês conseguiram a façanha de traduzir para nosso tacanho e pragmático mundo ocidental as sutis metáforas tão comuns nas milenares histórias orientais.
Afinal, somos meio cegos e limitados nesse sentido, como prova o processo de construção da civilização ocidental, pródigo em destruir tudo aquilo que não pode ser encaixado em nossa egoísta visão de mundo, inclusive os sonhos.
E são essas sutis metáforas que escondem a principal mensagem do conto: amar vale toda a viagem, viver e morrer por amor é apenas uma consequência natural da vida, pois tudo nasce, cresce e morre.
No fim, ao se cruzar aquela linha obscura entre a vida e a morte, independente do que digam as centenas de crenças religiosas, se haverá ou não um paraíso dos justos ou um julgamento final, o que fica são os sonhos que se distribuiu pela vida e o amor que sentiu por si mesmo e pelos outros.
A raposa, mesmo astuta, e o Monge, mesmo bondoso, aprendem isso da pior e da melhor maneira. E sofrem sim seu julgamento. Não o julgamento do Apocalipse, com seus terríveis anjos, trombetas e livros sobre nossos dias de vida. O julgamento mostrado em Os Caçadores de Sonhos é muito mais sutil e cheio de significado. O que é pesado ali é o que somos e o que pensamos, não o que fizemos ou deixamos de fazer.
Conceito complicado num mundo em que somos comandados pelo relógio e tememos mais o desemprego e o carinha do farol do que o Apocalipse.
Mas claro que o amor tem o seu antagonista. Nossa pragmática obviedade aponta imediatamente para o ódio.
E aí somos surpreendidos novamente pela sabedoria oriental. Não é o ódio o principal vilão dessa história, mas sim o medo. Quem ama nada teme, nem a vida, nem a morte. Já quem tem medo nunca encontrará o amor e, por analogia, jamais poderá viver ou morrer plenamente.
E o medo é personificado no poderoso Mestre de Yin-Yang.
Rico, temido, conhecedor de profundos segredos sobre o mundo dos vivos e dos mortos mas atormentado pelo medo.
E é o seu medo e sua incessante busca pela paz que o fará encontrar o monge e a raposa.
No conflito interno existente em cada um dos personagens, somos pouco a pouco transportados para um mundo aparentemente fantasioso, habitado por seres mágicos e espíritos atormentados.
Mas é esse mundo de fábulas que reflete muito daquilo que vivemos e sentimos nesse moderno século XXI. Sobretudo o medo tão comum em nossa sociedade e essa inexplicável incapacidade de amar as coisas, que nos leva a uma espiral violenta contra tudo e todos, atacando outros seres humanos simplesmente por acreditarem em outro deus, por possuirem outra cor de pele ou por gostarem de coisas diferentes daquelas de que gostamos.
Uma irracionalidade que nos leva a não mais ter fé na humanidade, a enxergarmos a miséria como algo comum e o ódio como virtude.
Nesse sentido, o desfecho do belíssimo Os Caçadores de Sonhos guardam um importante ensinamento. Uma lição que envergonhará aqueles que, como eu, encaram a literatura como reflexo da vida. A aqueles que acham que um livro (ou um gibi) não é mais que um monte de páginas costuradas ou grampeadas, Os Caçadores de Sonhos será um livro incompreensível.
Nunca poderemos precisar exatamente o momento em que deixamos de lado a beleza do mundo infantil e entramos nessa coisa maluca e egoísta a que chamamos mundo adulto. Eu escolhi o dia 17 de setembro de 1985 porque foi essa data que minha traiçoeira memória resolveu gravar. Com certeza meus sonhos começaram a morrer antes daquele blecaute. E só foram definitivamente enterrados algum tempo depois.
Mas é uma data tão boa quanto qualquer outra.
Assim como aquela madrugada, há cerca de dois anos, quando percebi que os sonhos e a beleza de se acreditar neles haviam voltado ao meu cotidiano.
E agradeci por existirem homens que se recusam a deixar de sonhar e produzem coisas como esse Os Caçadores de Sonhos.
Um livro capaz de despertar reflexões profundas sobre como vivemos e até onde queremos (ou estamos dispostos) a chegar.
Uma história sobre escolhas difíceis entre opções simples. Sobre o que fazer quando temos que nos decidir se escolhemos viver e amar ou se nos esconderemos o resto de nossos dias entre as franjas do medo.
Uma lanterna para as escuras estradas da alma.
Neil Gaiman e Yoshitaka Amano, munidos apenas de seus chouchins, iluminaram meu caminho de volta daquela tenebrosa noite de setembro de 1985.