domingo, 28 de agosto de 2011

Novidades da Semana

Nesta semana, duas resenhas de HQ nacionais. E o melhor: as duas com elementos sobrenaturais!

A primeira revela uma paixão de infância por um dos melhores gibis brasileiros de terror em todos os tempos: Calafrio.

A volta ao mercado desse ícone, que durante mais de uma década abrigou os melhores profissionais das décadas de 50, 60 e 70, além de revelar grandes talentos até então desconhecidos do grande público, é uma das melhores notícias do ano.

Leia a crônica Calafrio: cachimbo, vela preta e a ressurreição de um mito, aqui mesmo, no Gibi Rasgado.

E teve também o lançamento de Birds, do Gustavo Duarte.

É simplesmente impossível não resenhar um gibi desse cara. Se você ainda não conhece seu trabalho ou se só conhece as charges esportivas que ele faz, um recado: seus gibis são sensacionais!

E Birds é seu primeiro gibi de terror. Bem, terror não é exatamente a palavra. Quer dizer, é. Mas também não é… Quer saber? É melhor você ler a resenha Birds: estilingue certeiro, lá no Quadro a Quadro.

Boa semana a todos!

Não se esquecendo que amanhã, dia 29/08, lá na Livraria da Vila (Alameda Lorena, 1731 – Jd. Paulista – SP) tem o lançamento de Histórias do Clube da Esquina, do Laudo Ferreira e Omar Viñole.

Imperdível.

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quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Calafrio: cachimbo, vela preta e a ressureição de um mito

CAPA_Calafrio_53Tem alguns sonhos que nos atormentam enquanto dormimos, que são recorrentes.
Já teve um daqueles pesadelos em que você corre, corre, mas nunca chega a lugar algum? Nunca somos rápidos o suficiente nesse mundo estranho em que habita nosso subconsciente.
Ou cães e lobos nos perseguindo.
Ou ainda o medo da inevitável morte representado em nossos piores pesadelos.
Mas tem também sonhos que nos perseguem durante a vida. Ou, como diriam nesse mundo doido dos negócios e dos livros de auto ajuda, objetivos.
Todo mundo tem, não olhe para o outro lado pensando que não é com você também.
É o sonho da casa própria, de um emprego estável, de sucesso e mulheres deslumbrantes, de príncipes encantados montados em suas ferraris. Ter um filho, fazer uma faculdade, conhecer o “estrangeiro”, comprar um vestido, ressuscitar um gibi, trocar de carro, abrir um negócio próprio…
Peraí!
Ressuscitar um gibi???
Sim, por que não? Tem gente que tem o sonho de chupar neve em Bariloche, porque eu não poderia querer ressuscitar um gibi?
Logo após doar toda a minha coleção de gibis, ainda não conseguia me livrar do vício das bancas. Sempre passava por uma, via o que estava saindo mas não comprava nada. Naquela época achava que estava realmente curado.
Foi quando comecei a sentir falta de algo que atravessou toda a minha infância e adolescência. Curioso, perguntei ao jornaleiro e ele respondeu seco:
- Mais uma que parou de ser publicada.
Eu já não colecionava mais, havia decretado o fim “daquela coisa de criança” na minha vida mas ainda assim foi um choque. A Calafrio, um dos melhores gibis brasileiros de terror de todos os tempos, havia encerrado sua carreira.
Aracaju_Expo_Terror_CalafriObviamente que aquela minha suposta “cura” era uma farsa e foi apenas uma questão de tempo até que os gibis voltassem ao meu cotidiano. Uma das primeiras coisas que fiz ao voltar a ler gibis foi começar o árduo trabalho de garimpar em sebos e feiras livres os números antigos da excelente publicação de Rodolfo Zalla.
Para quem não sabe, com a falência da Editora Vecchi no início dos anos 80 e, consequentemente, o cancelamento das revistas Spektro, Pesadelo, Histórias do Além e Sobrenatural, as revistas Calafrio e Mestres do Terror, ambas da Editora D’Art e editadas pelo incansável Rodolfo Zalla, foram as únicas representantes nacionais nas prateleiras das bancas de jornal. Havia também a excelente Kripta, da Rio Gráfica Editora, mas essa só publicava material das norte americanas Eerie e Creppy, e não tinha boitatá, escravos mortos assombrando fazenda nem mula sem cabeça.
Foram nas páginas de Calafrio  que pudemos ver gênios como Rodolfo Zalla, Eugenio Colonesse, Júlio Shimamoto e Flavio Colin desfilarem seus traços, além de toda uma geração de novos talentos, que tinham ali uma rara oportunidade de iniciarem suas carreiras.
Aquela foi a última grande publicação regular de terror no Brasil. E depois dela somente trevas, mas não das que gostávamos.
Sempre tive o desejo de ressuscitar a Calafrio. Um desejo doido, é claro, já que não sou editor, mas ainda assim um sonho. Um gibi daquele não poderia ficar guardado apenas nas memórias e estantes de antigos fãs. Aquela publicação representou toda uma era e foi o último grande reduto dos desenhistas e roteiristas que ajudaram a construir a indústria de quadrinhos que hoje parece finalmente se solidificar.
Mas o jornalista Wagner Augusto, do Clube dos Quadrinhos, graças aos deuses que protegem os quadrinhos nacionais, parece nunca ter abandonado a mesma ideia. Em parceria com o próprio Zalla, acabou de lançar uma nova edição de Calafrio.
Seguindo a numeração original, o exemplar 53 da coleção volta após quase duas décadas. Um lançamento que deve, antes de tudo, ser comemorado com cachimbo e vela preta.
Com um novo tratamento gráfico e visual, além de um formato ligeiramente maior, esta nova Calafrio promete ter vindo para ficar. Para alegria dos antigos fãs, eu incluído.
Mas os desafios não serão poucos. O público de hoje é bem diferente daquele de 30 anos atrás. E esse será o grande obstáculo à continuidade da publicação.
Uma geração altamente tecnológica, acostumada a uma leitura ligeira, que posta notícias através do celular, no momento em que ocorrem, e que tem como principal referência de quadrinhos nacionais apenas os profissionais que trabalham para as grandes editoras norte americanas.
Nomes como Colin, Lyrio Aragão ou Rubens Cordeiro pouco ou nada dizem a essa geração.
Um erro imperdoável próprio da juventude, que pouco se interessa pelo passado, mas que a nova Calafrio tem a rara oportunidade de corrigir.
Se esta 2ª fase der continuidade à linha editorial que a tornou célebre, a indústria de quadrinhos nacional terá uma publicação que o gênero terror (um dos mais populares de nossa história) há muito não via.
Um gibi com histórias clássicas mas também com material inédito.
Mas principalmente, um gibi com material e temas brasileiros. Algo que, sem dúvida, o mercado atual precisa mais do que nunca, sob pena de perder a mais bela de suas características, a multipluralidade.
E enquanto mostra sua cara às novas gerações, a Calafrio poderá contar com o apoio e carinho daqueles que nunca duvidaram que um dia ela voltaria a nos assombrar.
Não pude realizar o sonho de ressuscitá-la. Mas tive o enorme prazer de vê-la de volta ao mercado.
Como disse, algo que deve ser comemorado com cachimbo e vela preta.
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Em tempo: ontem esqueci de agradecer publicamente ao encantador Rodolfo Zalla. No dia do lançamento, após autografar a edição 53, esse gênio dos quadrinhos honrou-me com mais um autógrafo, dessa vez na nº 01 original. Algo que guardarei para a vida inteira.

domingo, 14 de agosto de 2011

Produtos e Produtores

Tem gente que você acaba de conhecer e não precisa de mais do que alguns minutos pra sacar que o cara ainda vai fazer barulho.
Nos quadrinhos, longe dos holofotes que o andam iluminando ultimamente por conta da recente (e merecida) exposição de brasileiros no mercado estadunidense, existe todo um mundo que a maior parte dos leitores de quadrinhos (sobretudo de comics americanos) desconhecem, mas que pulsa a um ritmo frenético.
Algo que convencionamos chamar de mercado independente.
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Um conceito totalmente equivocado mas bastante difundido, atribui ao mercado independente uma suposta responsabilidade sobre a “má qualidade” dos quadrinhos nacionais, à revelia de todas as provas de vitalidade e criatividade que ele tenha demonstrado nos últimos anos.
Basta uma rápida visita aos diversos fóruns especializados em quadrinhos (em uma parte bastante especifica dos quadrinhos, é bom lembrar) para cruzarmos com palavras como “lixo”, “merda” e “mal feito”. Não discordo que parte de nossa produção não possua a devida qualidade, mas me pergunto: qual mercado não sofre o mesmo desequilibrio qualitativo em sua produção?
Ou quem em sã consciência vai dizer que aquela aberração chamada Saga do Clone é merecedora da enorme tradição de um dos personagens mais bacanas e populares de todos os tempos? E para não dizer que só pego no pé da Marvel, quem poderia prever, ao ler O Derrotista, que o cara que escreveu aquilo seria no futuro o autor de Palestina e Gorazde?
Obras boas e ruins são comuns em qualquer mercado, mesmo nos mais estruturados, como o Oriental, o Americano ou o Franco-Belga (tá, lá é mais difícil, mas também acontece).
O que não podemos é, sistematicamente, acreditar que os quadrinhos nacionais não possuem qualidade e que o mercado independente é o grande vilão da história.
necro_02Colin publicou durante anos no mercado independente. Laudo Ferreira, André Diniz, Wellington Srbek, Danilo Beyruth e tantos outros nomes que hoje começam a ser apontados como referências nos quadrinhos nacionais, já publicavam excelentes trabalhos em gibis que variavam do papel jornal à xerox em A4 dobrado.
Acontece que durante muito tempo, o mercado independente era a única opção. E os caras tinham que sambar pra se fazerem ouvidos, pois as editoras só queriam (e muitas ainda só querem) um novo Maurício, um novo Ziraldo ou – o máximo da ironia – um novo trio de alucinados como Laerte, Angeli e Glauco (acho que não preciso contar aqui o barulho que eles fizeram na década de 80, vindos diretamente do mercado independente e com uma produção totalmente não convencional, muito mais próxima do underground de Crumb e Shelton, do que o padrão Turma da Mônica).
Mas o rolo compressor chamado informática – e com ela a internet – tem mudado radicalmente a forma de se produzir quadrinhos. O barateamento dos processos gráficos que envolvem sua produção e a incorporação de softwares de edição e imagens no cotidiano dos profissionais tem proporcionado um boom qualitativo no mercado independente. A xerox deixou de ser a principal opção e se tornou opção estética.
Outro dia estava ali na HQMix, fumando um cigarrinho com o Gual, e conversávamos justamente sobre os meios de produção atuais, da facilidade em se produzir novos formatos, novas cores (não exatamente novas, as cores sempre estiveram por aí, mas agora conseguimos imprimi-las), quando nos chega um carinha barbudo, simpático, acompanhado de sua também simpática esposa.
Após um abraço afetuoso no Gual, somos apresentados. O cara se chama Rafael Química e estava ali para apresentar o seu Produto. Não, não é um trocadilho, o gibi do cara se chama Produto e conta as desventuras de um tomate que sonhava ser modelo de natureza morta para algum pintor famoso.
Idiota? Ingênuo? Uma “merda” como dizem os pseudo entendidos em quadrinhos?
Não, na verdade está mais para genial.
Química aproveita o mote nonsense para produzir uma sarcástica história sobre como as coisas podem acontecer na indústria, seja ela qual for, e em como os sonhos e anseios de alguém podem dar terrivelmente errado – ou certo – nessas terríveis engrenagens que movem o show business. Uma ácida crítica que nos leva a uma honesta reflexão sobre os meios de produção e seus valores éticos e financeiros.
E tudo isso num bom humor de fazer inveja a qualquer um, a começar pela capa serigrafada, que simula uma banal caixinha de papelão dessas que habitam qualquer prateleira de supermercado (numa referência à maior e mais genial piada da história da arte). Dividido em duas histórias, Produto nos mostra dois pontos de vista: o do surreal tomate e o de seu incansável agricultor. A mesma história, dois caminhos diferentes que se não levam ao mesmo lugar, levam à mesma constatação e que se desdobram em outros pontos de vista.
Cínico, divertido e extremamente bem feito, Produto corrobora tudo aquilo que disse sobre o equivocado conceito de que os quadrinhos nacionais não possuem qualidade e vai além: mostra que o mercado independente deixou de ser a única opção e é hoje (como sempre foi, mas hoje mais do que nunca) o principal veículo para aqueles que tem algo a dizer além da obviedade enlatada que (ainda) pretende imprimir um suposto padrão de qualidade aos quadrinhos e ditar as regras do que deve ou não ser lido.
Como disse, às vezes não precisamos de mais do que alguns minutos para perceber que um cara ainda vai fazer barulho.
Rafael Química é um deles.
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Para conhecer mais sobre o trabalho de rafael Química, acesse http://quimicarafa.blogspot.com/

sábado, 6 de agosto de 2011

Histórias Inesquecíveis: Caminhos escuros, sonhos que terminam e pessoas que se recusam a deixar de sonhar

imagesCA9U0FLLQuando crianças, somos capazes de coisas incríveis.

Faz parte da natureza humana a invenção, a criatividade, o sonho. E é nas crianças que isso se revela em sua forma mais pura e devastadora.

A imaginação de uma criança é capaz de tudo. E se o tudo não for o suficiente ela é capaz de ir além.

Mas crescemos e em algum momento de nossas vidas algo se quebra em nossa mente infantil. É geralmente o momento em que também começamos a crescer.

Algo sutil, que quase nunca podemos precisar quando e onde acontece. Mas é ali que iniciamos a demolição de todo o mundo idílico de nossa imaginação e começamos a nos tornar adultos.

E essa é uma das vantagens de envelhecer. A memória se apura com a idade e coisas vem à tona. Geralmente as coisas que merecem ser lembradas.

17 de setembro de 1985. Falando assim parece apenas uma data. Era uma terça feira à noite e eu tinha acabado de completar 13 anos. Lembro muito bem porque tinha andado a pé 05 km até a casa da minha tia, no outro lado do morro que é a Vila Formosa, zona leste de capital paulista.

Não tínhamos mais nenhum dinheiro em casa e minha irmã mais nova precisava de leite na manhã seguinte. E mais: ela completaria quatro anos naquela manhã e minha mãe queria fazer um bolo, então precísavamos mesmo daqueles litros de leite.

Eu, apesar da pouca idade, trabalhava como servente de pedreiro aos finais de semana com meu tio. Tinha ido receber os trocados que recebia como paga.

Até aí tudo bem, estava acostumado com o caminho e aos 13 anos realmente não me importava de andar toda aquele distância por algo que, em valores de hoje, não devia ultrapassar uns 20 contos. Ainda mais porque eles salvariam o parabéns a você da Foo (esse é o nome dela, tem outro na certidão de nascimento, mas raramente o usamos).

A merda toda aconteceu na volta. Minha memória me trai aqui, não consigo lembrar o horário, mas já era noite.

E de repente tudo ficou ainda mais escuro. A energia elétrica tinha ido pro saco.

Já estava no meio do caminho, no pé do morro onde termina a Vila Matias e começa a Vila Formosa. Foi quando caí na besteira de olhar para trás. Não era uma quadra ou duas sem energia, era tudo até onde a vista alcançava. Estávamos (e isso eu só soube depois) no primeiro grande blecaute que o país sofreu.

Se os mais novos acham assustador o blecaute de 2009, imaginem num tempo em que as ruas eram habitadas apenas por ônibus e um ou outro taxi, onde quem tinha um fusca ou uma brasília era abastado e praticamente só os hospitais tinham geradores próprios.

Quando as pessoas que estavam nas ruas perceberam a extensão do apagão, começaram a correr. Alguns gritavam.

Na esquina, do outro lado da Avenida João XXIII, alguém armado com um pedaço de pau começou a espancar um orelhão enquanto gritava palavras de ordem contra o então presidente José Sarney.

Enfiei a mão no bolso e segurei firme as notas da paga. Corri o mais rápido que pude e não parei até chegar em casa.

Nunca em minha vida senti tanto medo como naquela noite. Medo do escuro, medo de homens que saíam das sombras, medo de não ter leite no dia seguinte, medo de estragar tudo.

Naqueles  milhares de metros em carreira, deixei pra trás muito mais do que a escuridão. Deixava ali também a minha infância e a minha capacidade de sonhar.

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Muitas coisas contribuíram para que esse blog existisse. Já falei sobre elas aqui, mas me esqueci de um fato banal, acontecido há cerca de dois anos, que na época me deixou bastante contente mas que havia permanecido escondido nessa coisa maluca chamada memória e que só agora vem à superfície. Algo extremamente importante nessa minha caminhada nos quadrinhos.

Estava num sebo e começava a recobrar o gosto por colecionar esse troço a que chamamos de gibi quando encontrei Os Caçadores de Sonhos, de Neil Gaiman e Yoshitaka Amano (Editora Conrad, 2000).

Os mais puristas podem dizer que não se trata de quadrinhos. E, claro, estão cobertos de razão. Os Caçadores de Sonhos é um conto ilustrado. Mas é um conto de Sandman.

Quero que me digam um único cara que colecione Sandman e não o tenha em sua estante. Todos os fãs da epópeia do Senhor dos Sonhos conhecem a edição e são unânimes em afirmar que é uma das coisas mais lindas da saga.

Não a li de imediato. No mundo dos quadrinhos existem coisas que não valem nem uma leitura rápida num ônibus parado no trânsito. Outras, entretanto, não merecem ser lidas em tais condições. O livro de Gaiman e Amano pertence a segunda categoria.

Aguardei pacientemente 03 dias até que chegasse a sexta feira. Por volta das onze da noite minha esposa foi se deitar, ela trabalha aos sábados, eu não. Desliguei a TV, sentei-me no chão da cozinha, esquentei uma xícara de café e acendi um cigarro.

A leitura terminou as três da manhã. Muita coisa aconteceu naquele meio tempo.

Para quem ainda não conhece a história, Os Caçadores de Sonhos é baseado em um antigo conto japonês, traduzido para o Ocidente como A Raposa, o Monge e o Mikado dos Sonhos. Melhor seria dizer que se baseia em vários  contos antigos, já que é um conto folclórico e, como tal, possui várias versões que se diferem entre si nos detalhes, nomes e lugares, mas que são semelhantes em sua essência. O conto fala sobre uma raposa que se apaixona por um solitário monge. No caminho desse amor impossível encontraremos um poderoso e atormentado feiticeiro que fará de tudo para encontrar a paz, inclusive matar.

É surpreendente saber que a história existe há centenas, talvez milhares de anos, pois as coincidências com o mundo criado por Gaiman para sua versão de Sandman não são poucas.  O que prova a tese que as histórias estão por aí, assim como os pensamentos, basta que alguém entre na mesma sintonia e elas acontecerão.

E é essa sintonia que temos a rara oportunidade de presenciar na obra de Gaiman e Amano.

Não vale aqui contar mais sobre a história. Ela é simples e desconfio que uma rápida busca no Google possa entregar muito mais do que eu ousaria. Vale a pena sim contar um pouco do que ela revela.

Os Caçadores de Sonhos trata, principalmente, de onde até o amor pode chegar.

A raposa começa sua história tentando enganar o abnegado monge. Um ardil, uma trapaça para corromper uma alma, afinal, as raposas, em toda a história da humanidade, em milhares de contos de fadas, sempre foram associadas a astúcia e ao orgulho.

Mas o caráter dúbio da raposa, tantas vezes contado em prosa, não foi esquecido no conto japonês. Como na vida, o tiro sai pela culatra e a raposa, antes sedenta por ludibriar o monge, percebe suas qualidades e se apaixona.

E aí entra o talento narrativo de Gaiman e a explosão visual que são as ilustrações de Amano. Não é incorreto dizer que o inglês e o japonês conseguiram a façanha de traduzir para nosso tacanho e pragmático mundo ocidental as sutis metáforas tão comuns nas milenares histórias orientais.

Afinal, somos meio cegos e limitados nesse sentido, como prova o processo de construção da civilização ocidental, pródigo em destruir tudo aquilo que não pode ser encaixado em nossa egoísta visão de mundo, inclusive os sonhos.

E são essas sutis metáforas que escondem a principal mensagem do conto: amar vale toda a viagem, viver e morrer por amor é apenas uma consequência natural da vida, pois tudo nasce, cresce e morre.

No fim, ao se cruzar aquela linha obscura entre a vida e a morte, independente do que digam as centenas de crenças religiosas, se haverá ou não um paraíso dos justos ou um julgamento final, o que fica são os sonhos que se distribuiu pela vida e o amor que sentiu por si mesmo e pelos outros.

A raposa, mesmo astuta, e o Monge, mesmo bondoso, aprendem isso da pior e da melhor maneira. E sofrem sim seu julgamento. Não o julgamento do Apocalipse, com seus terríveis anjos, trombetas e livros sobre nossos dias de vida. O julgamento mostrado em Os Caçadores de Sonhos é muito mais sutil e cheio de significado. O que é pesado ali é o que somos e o que pensamos, não o que fizemos ou deixamos de fazer.

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Conceito complicado num mundo em que somos comandados pelo relógio e tememos mais o desemprego e o carinha do farol do que o Apocalipse.

Mas claro que o amor tem o seu antagonista. Nossa pragmática obviedade aponta imediatamente para o ódio.

E aí somos surpreendidos novamente pela sabedoria oriental. Não é o ódio o principal vilão dessa história, mas sim o medo. Quem ama nada teme, nem a vida, nem a morte. Já quem tem medo nunca encontrará o amor e, por analogia, jamais poderá viver ou morrer plenamente.

E o medo é personificado no poderoso Mestre de Yin-Yang.

Rico, temido, conhecedor de profundos segredos sobre o mundo dos vivos e dos mortos mas atormentado pelo medo.

E é o seu medo e sua incessante busca pela paz que o fará encontrar o monge e a raposa.

No conflito interno existente em cada um dos personagens, somos pouco a pouco transportados para um mundo aparentemente fantasioso, habitado por seres mágicos e espíritos atormentados.

Mas é esse mundo de fábulas que reflete muito daquilo que vivemos e sentimos nesse moderno século XXI. Sobretudo o medo tão comum em nossa sociedade e essa inexplicável incapacidade de amar as coisas, que nos leva a uma espiral violenta contra tudo e todos, atacando outros seres humanos simplesmente por acreditarem em outro deus, por possuirem outra cor de pele ou por gostarem de coisas diferentes daquelas de que gostamos.

Uma irracionalidade que nos leva a não mais ter fé na humanidade, a enxergarmos a miséria como algo comum e o ódio como virtude.

Nesse sentido, o desfecho do belíssimo Os Caçadores de Sonhos guardam um importante ensinamento. Uma lição que envergonhará aqueles que, como eu, encaram a literatura como reflexo da vida. A aqueles que acham que um livro (ou um gibi) não é mais que um monte de páginas costuradas ou grampeadas, Os Caçadores de Sonhos será um livro incompreensível.

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Nunca poderemos precisar exatamente o momento em que deixamos de lado a beleza do mundo infantil e entramos nessa coisa maluca e egoísta a que chamamos mundo adulto. Eu escolhi o dia 17 de setembro de 1985 porque foi essa data que minha traiçoeira memória resolveu gravar. Com certeza meus sonhos começaram a morrer antes daquele blecaute. E só foram definitivamente enterrados algum tempo depois.

Mas é uma data tão boa quanto qualquer outra.

Assim como aquela madrugada, há cerca de dois anos, quando percebi que os sonhos e a beleza de se acreditar neles haviam voltado ao meu cotidiano.

E agradeci por existirem homens que se recusam a deixar de sonhar e produzem coisas como esse Os Caçadores de Sonhos.

Um livro capaz de despertar reflexões profundas sobre como vivemos e até onde queremos (ou estamos dispostos) a chegar.

Uma história sobre escolhas difíceis entre opções simples. Sobre o que fazer quando temos que nos decidir se escolhemos viver e amar ou se nos esconderemos o resto de nossos dias entre as franjas do medo.

Uma lanterna para as escuras estradas da alma.

Neil Gaiman e Yoshitaka Amano, munidos apenas de seus chouchins, iluminaram meu caminho de volta daquela tenebrosa noite de setembro de 1985.

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quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Ops…

Galera, a vida ficou enrolada nesta semana.

Culpa das profecias pré colombianas sobre o fim do mundo. O clima anda meio maluco e a sinusite pegou de jeito.

Então a postagem de hoje vai ter que ficar para sábado.

E falando nos compromissos de sábado, os paulistanos não tem do que reclamar.

Amanhã, dia 04/08, vai rolar lá na Livraria Saraiva do Shopping Pátio Higienópolis (Av. Higienópolis, 618 - loja 315 - Piso Higienópolis), o lançamento do ótimo Leonardinho – Memórias do Primeiro Malandro Brasileiro, de Walter Pax e Vicente Castro.

No sábado, à partir das 10 da manhã, vai rolar lá na Galeria do Rock (Rua 24 de Maio, 62 – 2º andar – Loja 329), em pleno Centrão, a inauguração de uma nova loja especializada em quadrinhos: O Cara dos Quadrinhos.

E pra fechar a noite em grande estilo, na HQMix (Praça Roosevelt, 142), à partir das 19:30, vai ter o lançamento de Auto da Barca do Inferno, do Laudo.

Pra quem ainda não leu, veja a resenha aqui.

Um grande abraço a todos.

Lillo