Em dez anos de Teatro Popular União e Olho Vivo, vi pelo menos umas vinte adaptações – amadoras e profissionais – de obras do nosso dramaturgo, César Vieira.
Aos que estão perguntando: sim, o mesmo que processou a Conrad e os autores de Chibata por plágio. Pois é, faço resenhas de quadrinhos, estou produzindo um roteiro para a Editora Nemo, mas também sou ator de teatro e, por acaso, participei da montagem de João Cândido do Brasil – A Revolta da Chibata desde o rascunho do texto. Mas isso é matéria para uma futura postagem.
Voltando ao assunto, vi excelentes adaptações de nossas peças, outras nem tanto. A explicação não é simples mas é clara.
Apesar da excelência do texto, uma montagem – por mais fiel que seja – traz em seu bojo a visão do diretor ou produtor, a performance dos atores, o talento do cenógrafo, do iluminador e do figurinista e mais um monte de coisas que envolvem mais uma centena de variantes que podem influenciar o trabalho de mil formas diferentes. E por aí vai…
O que fica? O resultado, que pode ser bom ou ruim.
A mesma lógica se aplica às adaptações de peças ou de obras literárias para qualquer outra mídia.
Na história do cinema temos um sem número de exemplos de ótimas e péssimas adaptações. Na história da televisão também. No teatro, quando adaptam obras que não em seu formato original, a história se repete.
Nos quadrinhos não poderia ser diferente.
Mas ao contrário de outras mídias, o aquecimento do mercado de quadrinhos nacionais e o consequente aumento de adaptações literárias por essa mídia, sintoma direto do recente interesse do governo na compra de produtos de tal segmento, parece despertar o preconceito daqueles que as atribuem a uma suposta desmoralização da literatura.
Na minha opinião, tal preconceito faz parte de um sentimento muito maior, que pretende colocar os quadrinhos numa categoria desonrosa entre as diversas formas de expressão e arte.
O fato, que convenientemente é esquecido por quem segue essa linha de pensamento, é que uma história em quadrinhos não é um livro e não pode ser tratado como tal. Em muitos aspectos é superior e em outros muitos, inferior à literatura.
Simplesmente porque não é literatura. São histórias em quadrinhos e possuem características e signos próprios. Assim como um texto de uma peça não é a peça em si até ser encenada (seu veículo original), uma adaptação em quadrinhos de uma obra literária não é a obra, mas uma interpretação dela para um outro meio.
E é aí que caímos num puta dum avião apertado, na última fileira (aquela que não permite que você recoste o banco), numa viagem de São Paulo a Salvador.
É sério, qualquer um enlouqueceria. Duas horas de viagem, sem o menor espaço para ligar o notebook e com o ipod serenamente repousado no colo de minha esposa, seis fileiras à frente. Sim, porque eu sou um viciadinho em coisas tecnológicas. Mas as uso para entretenimento e conhecimento, porque assim é o mundo hoje. O que não me impede de ler um bom livro, diga-se.
Mas também não tinha nenhum bom livro por perto.
Então me lembrei que havia contrabandeado dentro da bolsa do note o Laudo. Não ele literalmente, é claro. Refiro-me a Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, adaptado por Laudo Ferreira (Editora Peirópolis, R$ 35,00).
Como sempre faço, li o texto da quarta capa, as orelhas e a introdução. Nunca deixo de fazer isso e sempre aconselho as pessoas que não o fazem a adquirirem o hábito. Esses textos, cada vez mais presentes nos álbuns de quadrinhos, trazem pistas preciosas sobre o que você está prestes a ler.
Começada a leitura, não precisei de mais de cinco páginas para xingar o Laudo de tudo o que é nome. Como assim texto original em português do século XVI? Já não basta essa senhora, dormindo desaforadamente com o banco reclinado sobre o meu joelho, esse ármário ao meu lado (coitado, como se o cara tivesse culpa de ter, sei lá, uns 03 metros de altura) e eu ainda vou ter que ler um gibi num português que não é praticado há pelo menos 200 anos?
Mas eu tinha nas mão um gibi do Laudo, o mesmo cara que teve a ousadia de adaptar a vida de Cristo nos dois belíssimos volumes de Yeshuah. A mesma história, contada e repisada milhares de vezes, mas que ele contou de uma maneira totalmente inesperada.
Uma história que me emocionou como poucas coisas que li na vida.
Ainda restava cerca de uma hora e meia até Salvador…
Decidi ver até onde o Laudo iria me levar dessa vez. Auto da Barca do Inferno em texto original? Vai pra mais de vinte anos que li isso. Resolvi confiar no Barqueiro, digo, no artista.
O Neriney Moreira – um dos fundadores do Teatro União e Olho Vivo em 1966 e que está conosco até hoje – sempre nos ensinou:
“Um texto de teatro possui uma musicalidade própria. Se você achar o tom, poderá fazer o que quiser com ele”.
Um sábio ensinamento, para quem lê textos teatrais ou – como acabei descobrindo – para quem lê qualquer texto.
E para se ler Auto da Barca do Inferno isso foi fundamental. O segredo está na capacidade individual de imersão do leitor. Quanto mais ele “entrar” dentro da história, mais fácil será o entendimento.
Afinal, por mais séculos que separem o autor português do gibi do Laudo, ainda é língua portuguesa.
Foi só criar vozes distintas na minha cabeça (sempre tive facilidade com isso) e começar a viagem.
E senhores, eu posso garantir, ler a Barca num avião que não parava de sacolejar, na situação em que eu me encontrava foi uma experiência inesquecível.
De um lado o próprio diabo:
- À barca, à barca, boa gente, que queremos dar a vela!
E do outro a aeromoça com aquele sorriso demoníaco:
- O senhor aceita uma balinha?
E de repente a viagem começou a ficar muito divertida.
A forma como Laudo recriou o texto de Gil Vicente é assombrosa. Para quem ainda não conhece a história, temos um cais no fim do mundo, onde estão atracadas duas barcas. Elas estão ali para dar passagem aos recém falecidos. Uma das barcas, cujo barqueiro é o próprio demônio, levará os malditos, os impuros, os ladrões e assasinos, as prostitutas, os corruptos, os… bem vocês já entenderam, né? Pois bem, essa primeira barca levará tais desafortunados ao inferno. A segunda barca – a da Glória – tem como barqueiro um Anjo do Senhor, e embarcará aqueles que são dignos do paraíso celestial.
Todo o sarcasmo do autor português, que enviava à barca infernal pessoas que existiam de verdade na sociedade portuguesa daquele começo de século XVI, são magistralmente recriadas por Laudo.
A sutil ironia escondida entre uma palavra e outra e entre os diálogos, os momentos de silêncio, os olhares, as investidas do diabo, o contra ponto cômico na trama…
Não há um único detalhe que tenha passado desapercebido por Laudo. Prova inequívoca que uma boa adaptação precisa sim de muito estudo, mas sobretudo, precisa de um olhar artístico diferenciado.
E nisso Laudo fez o papel de um verdadeiro diretor de teatro. E não só dele. Pois se analisarmos o gibi, veremos que Laudo foi também cenógrafo e figurinista, além de diretor de atores de toda a peça. Só não foi iluminador porque no caso das cores utilizadas contou com o também talentosíssimo Omar Vinole, velho parceiro de outros mares.
E soube como niguém distribuir um texto pesadíssimo pelas mais de 40 páginas da adaptação. Não por acaso, lá pela vigésima página ainda que inconscientemente, acabei me vingando do ármario ao meu lado (coitado) e da dorminhoca à minha frente.
Começou baixinho, quase imperceptível. E antes que eu me desse conta, já estava recitando o texto de Gil Vicente em voz alta! O cara do meu lado começou a me olhar como se eu tivesse alguma doença contagiosa e inexplicavelmente diminuiu o tamanho de seus ombros. A dorminhoca que a essa hora já estava acordada por conta daquele negócio que chamam de lanche (“aceita um hot-dog senhor?”) não conseguiu mais dormir.
E eu me divertindo como nunca.
Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, por Laudo Ferreira é tudo o que uma adaptação pode ser e é ainda mais: é uma história de quadrinhos de verdade, com quadros, balões, sarjetas, recordatórios, enquadramentos, onomatopéias…
Não pretende substituir o original, mas sim mostrar de uma forma diferente, todo o seu valor e suas nuances.
E num tempo em que cada um diz o que quer, inclusive taxar como criminosas adaptações feitas por profissionais competentes e honestos, que estão apenas aproveitando uma oportunidade de mercado, Auto da Barca do Inferno é uma aula de quadrinhos e das possibilidades ilimitadas desse meio.
Justamente por não ser literatura, mas sim uma coisa bem diferente.
Para conhecer mais sobre a obra de Laudo Ferreira, acesse o Blog Mamão.
Para ler a matéria Os quadrinhos podem matar a literatura, de autoria de Luís Antônio Giron e publicada no site da Revista Época, clique aqui.
Lillo;
ResponderExcluirSua capacidade de utilizar desventuras aeroviárias como linha narrativa da resenha foi sublime. Só assim pra eu saber como foi sua viagem de vinda a Salvador... :-)
Lillo;
ResponderExcluirInfelizmente (ou felizmente) li o artigo do Giron que você indicou na resenha. Deixei lá meu comentério, mas como não acho que eles vão publicar replico-o a seguir.
"Muitos antes de, e com pensamento igual a, você fizeram afirmações como a que você faz: o cinema ia acabar com o teatro e a TV ia acabar com o rádio - sem falar que a FM ia acabar com a AM. O que vemos hoje é a complementeridade de todas estas mídias e a acomodação das mídias que chegam a este esquena de complrmentaridede.
Concordo que existem boas e más adaptações, e isso vale para qualquer obra em qualquer mídia, mas afirmar que más adaptações de obras literárias para os quadrinhos podem destruir a literatura é um desserviço ao quadrinho nacional - especialmente por utilizar meia dúzia de exomplos do que você considera uma má adaptação.
Se você realmente gosta de quadrinhos e quadrinistas (como disse no seu texto) aborde a questão de maneira mais objetiva e imparcial, contribuindo para o melhora do mercado de quadrinhos no Brasil. Você percebeu que o texto de Auto da Barca do Inferno estava em português do século XVI? Talvez por ter a visão de que quadrinhos é apenas para entretenimento (você que escreveu isso), tenha achado que era erro de português.
Mais uma vez, concordo com você no que diz respeito a qualidade das adaptações - pois realmente existem boas e más. Mas utilizar isso pra afirmar que os quadrinhos vão destruir a literatura chega a ser infantil."
Serjão, publicaram!
ResponderExcluirNa boa, como assim "ato criminoso"?
E baseado em que um sujeito que se refere ao Mestre Colin como criador de Estórias Gerais (em "parceria" com o Srbek)estipula que essa ou aquela sejam más adaptações? Colin foi o maior desenhista dos quadrinhos brasileiros, mas a adaptação do sertão em Estórias Gerais é toda de responsabilidade do Srbek...
Esse jornalista foi de um desrespeito atroz aos profissionais de quadrinhos. E qualquer um - educadores, blogueiros, jornalistas, roteiristas e desenhistas - que lidem diretamente com a nona arte percebem que esse jornalista não possui a menor intimidade com o assunto que se propôs a abordar. Simplesmente lamentável.
E eu tava com dor de garganta, senão teria contado essa aventura aérea com riqueza de detalhes...