terça-feira, 5 de julho de 2011

Brincando de Aro

Coraci“Você não sabe nada sobre isso, é uma criança!”

A Fernanda é minha sobrinha, uma doce menina de 10 anos de idade. Filha da Zanze e irmã da Francine, outra graça e no auge de seus 15 anos.

A Francine é bela, loira, magra, falastrona, inteligente, vivaz, espirituosa e, em poucos meses na nova escola, já havia se tornado uma das mais populares. É e sempre foi assim, nunca vai mudar. É um daqueles seres iluminados.

A Fernanda é bem diferente. Quieta, introspectiva e genial, não há palavras para defini-la. Com apenas 10 anos desenha de uma forma que eu nunca aprendi, mesmo tendo feito artes plásticas. Sua noção de equilíbrio numa composição é assustadora para alguém de tão pouca idade.

E também lê de tudo. E mais, cria histórias em sua cabeça. Devora um gibi da Turma da Mônica Jovem em poucos minutos. E não se contenta. Peça para ela contar qualquer história que acabou de ler e você terá uma grata surpresa: ela conta a história pontuando os momentos chaves, dimensionando a personalidade das personagens e traçando a linha narrativa da história, com climax e tudo!

A Fernanda ensinou-me algo que intuitivamente já sabia, mas não enxergava: as crianças são muito mais do que aparentam ser. Subestimá-las é um desrespeito, além de ser uma crueldade que pode, muitas vezes, destruir toda uma vida.

Infelizmente, esse pensamento arcaico foi amplamente disseminado nos mais variados meios culturais. Quando não está focado numa sexualização precoce, está centrado numa idiotização da capacidade intelectual da molecada.

Nos quadrinhos não é diferente. Os exemplos mais óbvios – Disney e Maurício – não nos dão a medida exata do que acontece. Ambos estão internalizados na memória das crianças desde os tempos em que nossos avós usavam fraldas (no caso do primeiro) ou, como no caso do segundo, desde que eu era um feto (e olha que não sou mais nenhum garotinho). E como tudo o que se mantém há tanto tempo, alternam momentos ruins em suas produções com fases absolutamente geniais.

Mas via de regra, a produção de quadrinhos infantis possui a tendência de ser pouco interessante ao público que realmente interessa: as crianças. O que parece um contrassenso num país que possui Lobato, Maurício, Ziraldo e mais um montão de gente boa.

Mentalidade dos editores? Não sei. Entraria num campo que desconheço e seria leviano culpar alguém. Só sei que passei a infância sem quadrinhos de qualidade, exceção feita aos já mencionados pais do pato e da dentuça. Tinha também Ziraldo, mas esse só me foi apresentado quando eu já era um adulto.

Mas ao que tudo indica, esse cenário começa a mudar, na esteira de um mercado que vem se mostrando cada vez mais atraente já temos alguns ótimos exemplos de quadrinhos infanto-juvenis.

Os dois últimos foram lançados nesse fim de semana e são excepcionais: Ciranda Coraci e O Senhor das Histórias, ambas de Wellington Srbek e Will (Editora Nemo, R$ 19,00 cada).

Ciranda_capaPertencentes à coleção Mitos Recriados em Quadrinhos, são o cartão de visitas da estreante Editora Nemo. E ela começa muitíssimo bem.

“Não julgue um livro pela capa”, dizia a minha avó.

(Mentira. Não dizia, ela mal sabe ler. Mas é um dos ditados que ela com certeza diria e que, geralmente, é verdade.)

Mas não nesse caso. Os dois álbuns saltam aos olhos já na apresentação, com um acabamento de primeira e um preço pra lá de honesto.

SENHOR~1Mas não são nas edições bem cuidadas que reside a força desses dois álbuns e sim na qualidade do conteúdo.

Ciranda Coraci conta a versão indígena da história da Criação, do Sol e da Lua. Já O Senhor das Histórias nos traz um dos contos do mito africano Anansi, também conhecido como Deus-Aranha e o tal senhor das histórias do título.

São histórias infantis sobre mitos cujas origens se perdem no tempo. Escritas numa linguagem acessível à gurizada, num primeiro momento sequer mereceriam uma folheada mais séria destes senhores tão acostumados a Gaimans e Moores.

E é aí que todos se enganam, eu inclusive. Os dois álbuns são uma aula de quadrinhos, equilibrando na medida exata narrativa e desenhos e tornando as histórias atrentes para crianças e adultos de todas as idades.

O talento do roteirista mineiro Wellington Srbek é inquestionável. Ganhador de inúmeros prêmios HQMix e autor de alguns dos mais belos trabalhos dos últimos 15 anos, Srbek vem há algum tempo dedicando uma boa parcela de sua produção ao público infantil.

Na série institucional Pratique Gentileza, criou uma personagem adorável: o grandalhão e simpático robô Urbanoide. Com distribuição gratuita e falando de cidadania, a série tem tudo para se tornar clássica.

Ali ele aprimorou muitos recursos narrativos próprios da literatura infantil, sobretudo na utilização formal da lingua portuguesa e no ritmo narrativo diferenciado para aquele público alvo, e conseguiu um resultado de rara qualidade.

E é essa experiência que ele agora aplica de forma desconcertante em Ciranda Coraci e O Senhor das Histórias. As quatro primeiras páginas do mito contado em Ciranda são primorosas.

Um roteiro que em nenhum momento desrespeita a inteligência das crianças, tratanto de temas curiosos a quem tem mais porquês do que respostas em sua curta existência, mas sempre com leveza e muita diversão.

E tocando em temas bastantes sérios também, como morte, doença e miséria, sem entretanto, cair nas óbvias “lições de moral” ou respostas fáceis.

“Gibi para crianças que não são bobocas”, diria a Fernanda.

(E diria mesmo, desta vez não é mentira.)

Mas Srbek não é apenas um bom roteirista.

Dizem que mineiro é desconfiado, que fala pouco e fica ali na dele, só observando, esperando o momento certo de entrar na conversa ou tomar uma atitude.

Folclores regionalistas à parte, o mineiro Srbek realmente ficou bastante quietinho e esperou sim o momento certo para dar o bote.

E o bote nesse caso foi o desenhista paulista Will.

Olhando os dois álbuns, ninguém acredita.

AnansiComo é possível que um talento do tamanho desse desenhista tenha ficado restrito nos últimos anos ao mercado independente? Como nenhuma editora reparou nesse egresso do mercado editorial, que resolveu fazer quadrinhos por curtir o negócio?

Não há como negar o talento de Will. Não há páginas ruins nos álbuns, sequer existem as menos bonitas. Em Ciranda e O Senhor só temos páginas belíssimas e algumas simplesmente geniais.

Cor, traço, equilíbrio… Tudo no trabalho de Will parece fluir naturalmente.

Os jovens adultos com menos de 30 talvez nunca tenham visto isso, mas no meu tempo de moleque era comum rodarmos a Vila atrás de pneus velhos, jogados em terrenos baldios ou às margens dos corrégos.

Mas não era qualquer pneu. Tinha que ser de bicicleta, mas os mais cobiçados eram os das “motocas”. Pegávamos o pneu e um cabo de vassoura qualquer. Rolávamos o dito cujo ladeira abaixo e íamos controlando sua direção com o cabo de vassoura. Aquilo era uma das melhores diversões que existiam. Enquanto “dirigíamos” o pneu podíamos ser qualquer pessoa, fosse o “Fitipaldi” ou um piloto de foguete. Não havia limites à imaginação. Chamávamos isso de brincar de “aro” (aro mesmo, a base que mantém a forma do pneu).

A arte do Will é isso. É brincar de “aro”. É ir até onde a imaginação alcançar.

Ciranda Coraci e O Senhor das Histórias são o casamento perfeito entre um roteiro inteligente e um traço mágico.

Infelizmente, jamais verei a Fernanda (e creio que nenhuma outra criança) brincando de aro pelas asfaltadas ruas de São Paulo.

Mas ao menos poderei presenteá-la com uma coisa que não havia na minha infância: uma viagem por mundos mágicos em forma de histórias em quadrinhos.

6 comentários:

  1. A mais mágica de todas as resenhas... Um lançamento que realmente merece todas as atenções... E o Will com sua mágica pena, merece todas as palavras que aqui foram ditas...

    Não vejo a hora de colocar as mãos nesses álbuns...

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  2. O Will é genial, irmãozinho.
    Aliado ao Srbek então, só pode sair coisa boa.
    Os dois gibis são fantásticos.

    E o Will realmente merece toda essa onda em cima do lançamento, pois além de telentosíssimo, é um dos caras mais gente boas que eu conheço.

    Abração

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  3. Caro Lillo, eis uma oportunidade rara!
    Encontrar alguém que tem o dom da palavra utilizando-o de forma tão sábia, para numa só postagem trazer à tona tantos assuntos importantes. Confesso, que me emocionei. Sua abordagem faz a gente querer devorar imediatamente estas duas histórias.
    E como já as devorei, assino embaixo de tudo o que você escreveu,
    tanto sobre a sabedoria infantil, tantas vezes menosprezada,
    quanto à beleza resultante da união destes dois talentos formidáveis: Srbek e Will. A sensação que ficou quanto terminei de ler foi: "qual será o próximo mito?". Acompanho o mundo dos quadrinhos à distância, pois, curto mais histórias como estas (ainda raras de se encontrar), que enchem os olhos de cores, a alma de aventura e o coração de um prazer indescritível. Minha criança interior fez festa tanto ao ler as histórias, quanto agora, ao ler o que você tão magistralmente descreveu aqui. How!!! Desejo que o seu recado desperte muitos leitores (antigos e novos) para este novo despontar da literatura de H.Q's nacionais.

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  4. Nossa Mônica! Fiquei agora sem palavras. Muito obrigado pelos elogios. Mas devo dizer que a culpa é do Wellington e do Will. Os álbuns ficaram sensacionais e é um lançamento muito mais que bem vindo.
    E você descobriu um dos meus segredos: não vale a pena resenhar um gibi se ele não te causar nenhum tipo de reflexão. E Ciranda Coraci e O Senhor das Histórias nos faz pensar sobre muitas coisas importantes. E também nos lembra de um gosto e um prazer infantis há muito esquecidos.
    Além, claro, de serem uma deliciosa viagem pelo mundo da fantasia.
    Um super abraço e apareça sempre que quiser!

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  5. Lillo;

    Meus exemplares autografados (valeu brodher) serão utilizados para introduzir os quadrinhos na vida de minha filha Marina. Vai ser o tipo de coisa que lerei para ela antes de dormir e, quando ela já estiver lendo, irei presenteá-la.

    Belíssima resenha!

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  6. A Marina é uma menina de sorte, Serjão.
    Primeiro por ter um pai como você.
    Segundo por ter um pai que gosta de gibis!

    Tenho certeza que você vai ler essas histórias muitas e muitas vezes!

    Abração

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