domingo, 22 de agosto de 2010

Galinhas, porcos e um dos melhores gibis dos últimos tempos

Morar na periferia, acordar com o Sol raiando, encarar ônibus parecendo carroça e metrô lotado até os tubos. Essa é a minha rotina. Não sou herói. Essa é a rotina da maior parte dos paulistanos.

E se você não é de São Paulo, não acredite nas propagandas veiculadas nos horários políticos. O transporte público de São Paulo é um caos, o resto é realidade virtual.

E pra encarar essa vida eu sempre levo um livro, um gibi e – quando meu time tá numa boa fase – o jornal diário Lance!, especializado em esportes.

Não tem jeito, depois da capa a primeira coisa que eu olho é a charge do dia na página 03. E foi lá que eu conheci o trabalho do Gustavo Duarte, um cara que eu amo e odeio.

Por que eu amo o cara? É impossível não gostar dum camarada com um senso de humor tão ferino. Suas charges captam o que tem de melhor e pior no mundo dos esportes, seu traço é sempre preciso, limpo e funcional. Não há piada gratuita. E isso também pode ser observado em suas charges políticas (sobretudo nelas).

E por que eu o odeio? Essa é fácil. Eu sou corintiano… Dá uma olhada na charge aí embaixo – extraída do próprio blog do Gustavo – e você vai entender melhor:

ronaldo

No caminho de volta pra casa, a condução consegue ser ainda pior. Então às vezes eu espero um pouco até o metrô esvaziar. E nessas eu sempre aproveito para visitar os amigos. E por amigos quero dizer bancas de jornais, gibiterias, livrarias e sebos.

E lá estava eu na HQMix, olhando as novidades, quando cruzo com Có!, gibi do Gustavo, lançado de forma independente em julho de 2009.

Não precisei mais do que uma única folheada para comprá-lo.

E por um motivo muito simples: a exemplo das charges que faz, Gustavo produziu um gibi memorável.

Quarenta páginas, trinta e duas delas de história, p&b, brochura, boa impressão e preço acessível. Um gibi igualzinho a muitos outros, se não fossem as 32 páginas de história. E elas fazem toda a diferença.

Imagine-se naquela modesta casinha lá do seu rancho em Bauru, interior de São Paulo, curtindo um sabadão a noite na frente da TV, se divertindo adoidado com o Pacífico – imortal criação de Ronald Golias – quando toda a sua programação é destroçada por algo além de sua compreensão. No caso um Alien no seu chiqueiro.

Não é figura de linguagem, a personagem principal da história se depara com um Alien junto a seus porcos. O que acontecerá depois disso só lendo o gibi. Qualquer outra palavra estragará todas as surpresas. Só posso dizer que envolvem o modesto rancheiro, seus porcos e galinhas – muitas galinhas.

Existe até uma inusitada (e divertida) participação da Morte – sim, aquela da foice – numa caracterização pra lá de criativa – algo entre os palhaços dos circos de começo do século 20 e o humor macabro do melhor estilo Tim Burton.

Destaque para a estrutura narrativa de Có!: nenhum diálogo, nenhuma onomatopéia, um único balão de fala em todos os seus mais de 100 quadros e um ritmo cinematográfico. E nisso a história se aproxima muito do mestre Laerte e seus Palhaços Mudos.

É uma daquelas histórias em que os olhos passeiam facilmente pelos quadros, absorvem as imagens e anseiam pela sequência seguinte. É uma história ligeira, não porque seja rasa mas sim pelo seu ritmo absolutamente perfeito.

E ainda assim Gustavo imprimiu um carinho especial a cada um dos detalhes: o emaranhado de fios atrás da TV, o copinho de pinga, a flâmula do time do coração (na história, o Noroeste – time do autor), o boné virado do Golias, o pincel de barbear logo abaixo do talco no armarinho do banheiro, o saleiro cisne e seu indefectível chapéuzinho e mais um monte de pequenas coisas que podem ser encontradas na minha, na sua casa.

Você pode até não perceber tais detalhes numa primeira leitura, mas eles estão lá e também ficarão dentro da sua cabeça. E a cada releitura um deles se revelará, o que trará um novo sentido a piada. Um artifício genial.

A única notícia ruim. O Gual, veterano cartunista, um dos sócios da HQMix e também um dos melhores papos de São Paulo, confidenciou que aquele é co-bigo último lote de Có!, o que definitivamente é uma pena. Esse é um daqueles gibis que não se aparece todo dia, merecia uma nova edição.

Da Praça da República (a mais próxima da HQMix) a Itaquera (fim da linha vermelha do metrô) são 15 estações e cerca de 45 minutos de empurra empurra e gente reclamando.

Ninguém entendeu porque eu era o único que parecia estar me divertindo naquela noite.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

“Beijo mulher na boca para me sentir menos prostituta”

imagesA frase acima é de Arlete, prostituta, cafetinada pelo próprio pai. Qualquer um pode encontra-la, basta pagar alguns cruzeiros em qualquer sebo da cidade. Procure por Nelson Rodrigues, na estante de teatro. Precisamente, procure pela peça Os Sete Gatinhos.
Mas ela também poderia ser dita por qualquer uma das muitas personagens rodrigueanas que habitam O Corno que Sabia Demais e Outras Histórias de Zózimo Barbosa, ótimo álbum de Wander Antunes inspirada no Universo do famoso dramaturgo, publicado ainda na fase que a Pixel se preocupava com quadrinhos de verdade.

E Wander acerta em cheio. A ambientação da história no Rio dos anos 50 é o grande trunfo do gibi.

Nelson Rodrigues inaugurou em 1943 – ao lado do brasileiríssimo diretor polonês Ziembinski – o moderno teatro brasileiro, com a peça Vestido de Noiva. Jornalista, escritor, cronista e dramaturgo, retratou o cotidiano carioca como poucos. E a transposição narrativa daquele Rio de Janeiro aos quadrinhos foi feita com rara competência por Wander.
O autor – confesso fã do dramaturgo – foi ainda mais longe: a ele não bastou a ambientação, reproduziu também a essência da narrativa rodrigueana.
Todas as situações e personagens típicas do dramaturgo desfilam confortavelmente pelas páginas do Corno (apelido carinhoso do gibi nos fóruns e e-mails): o boa vida mulherengo que não perdoa nem mulher casada, as “polacas” (ainda que apenas textualmente), a mulher traída, o corno, o policial truculento, o marido covarde, a santa transformada em adúltera por amor e – claro – o canalha oportunista.

E é esse canalha – imoral, cínico e egoísta – a personagem principal do Corno: o Detetive Zózimo Barbosa.
Zózimo surgiu nas páginas da extinta revista Canalha ( que trazia o sugestivo subtítulo “Quadrinho pra quem não torce pelo mocinho”), editada por Wander Antunes e que trazia em suas páginas gente de peso como Laerte e José Ortiz.
Entre as centenas de provas de sua total falta de caráter encontradas nas 07 histórias do álbum, uma das mais improváveis está em “Matando um Amigo”. Ao ser procurado por um marido traído, Zózimo se vê diante da imoral proposta de receber uma bolada para matar o safado que andava comendo a esposa do corno (um dos muitos que povoam o gibi) – que no caso era o Bonitão, seu amigo.
Zózimo não titubea: “Se eu recusasse, o sujeito contratava outro e aí eu perdia uma boa grana… E isso eu não ia deixar acontecer. Pelo visto ia matar um amigo!”.

E se o roteiro segura bem as pontas, a arte não fica para trás. Wander revela que Zózimo teve um primeiro episódio desenhado por Mozart Couto. Entretanto é difícil imaginar o detetive no traço de Mozart. Culpa de Gustavo onçaMachado, que criou uma concepção visual perfeita para a personagem e uma ambientação ímpar para seu universo. Ora nos remete ao estilo linha clara dos quadrinhos europeus, ora nos faz enxergar o Amigo da Onça, imortal criação de Péricles.
Mas a arte do álbum foi creditada a Gustavo Machado e Paulo Borges, sem, entretanto, deixar claro quem desenhou o quê. Não chega a ser prejudicial, mas foi uma danada de uma falha editorial.

Outro problema é a linguagem extremamente datada, com o uso contínuo de gírias como “batata”, “espeto”, “papagaio”, comuns naqueles tempos.
Quem está acostumado com o universo rodrigueano não terá problemas, mas o reconhecimento das situações em que tais gírias são usadas e o que querem dizer pode demorar um pouco para quem nunca viu, leu ou assistiu as adaptações para o cinema de peças como Boca de Ouro, A Falecida ou Os Sete Gatinhos.

Mas estou sendo preciosista ao extremo. O Corno que Sabia Demais é um ótimo gibi, que vale o investimento, ainda mais porque foi lançado em 2007 e pode ser encontrado em promoções na Internet com relativa facilidade (foi assim que consegui o meu).
Então aproveitem a viagem. Não é todo dia que podemos passear pelo Rio de 1954 e espiar tanta devassidão, intriga e bom humor.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

O Holocausto: introdução ao horror

a_buscaAcabei de ler A Busca ( Eric Heuvel – Ruud van der Rol – Lies Schippers ), da Quadrinhos na Cia. O gibi não estava na minha lista de aquisições de julho mas praticamente caiu em meu colo. Como nunca fui de deixar de ler um gibi, aproveitei.

Confesso que esperava mais.

A Cia das Letras tem contribuído em muito com o mercado de quadrinhos nacional. Basta ver a recente publicação de Cachalote, de Daniel Galera e Rafael Coutinho. Preferências à parte, foi um ato editorial corajoso e ainda vamos ter que esperar algumas dezenas de meses para avaliar o impacto disso nas demais editoras e como elas se comportarão com os talentos nacionais.

Isto posto, voltemos ao bom A Busca.

O gibi conta a história de uma menina de 16 anos e sua aventura na fuga pela sobrevivência num mundo que estava totalmente fora de controle. No caso a Alemanha nazista, uma menina judia e os infames campos de extermínio de Hitler.

O roteiro é desenvolvido à partir das memórias da fugitiva já em sua velhice. Numa boa estrutura narrativa, Esther – a nossa heroína – parte em busca de respostas sobre seu passado e dos seus pais mundo afora, visitando pessoas e lugares que, de uma forma ou de outra, estavam ligados àquele período.

Os desenhos seguem o tom cartunesco das escolas européias (o gibi é holandês) e embora não seja o mais original dos traços, serve muito bem a seus propósitos.

E é aí que eu esperava mais. A embalagem bonita, os desenhos bacanas e a sinopse na última capa anunciam uma ótima história. Influenciado pela leitura do momento (Che, de Oesterheld) esperava encontrar um gibi denso mas deparei-me com um ótimo álbum introdutório sobre o Holocausto, claramente destinado à crianças e adolescentes. Que fala sobre a ferida de forma honesta, mas sem explorar textualmente ou graficamente os verdadeiros horrores cometidos contra os judeus.

Os quadros são altamente explicativos, se limitando muitas vezes exclusivamente à ilustração dos textos, comprometendo o andamento da história. Por outro lado, o caminho estético adotado funciona perfeitamente ao caráter educativo da obra, a transformando numa ótima opção didática sobre a 2ª Guerra e o Holocausto.

Pecado nenhum até aí. Mas meu padrão comparativo no tema é o surpreendente Maus, de Art Spiegelman. E aí The%20Complete%20Mausa coisa parte para o campo da covardia. Poucos gibis na história da história em quadrinhos estão no mesmo patamar que a obra de Spiegelman.

Não sei se vale os 33 paus investidos, mas se você tiver filhos entre 07 e 12 anos que curtam gibis, compre. Será uma ótima leitura para os miúdos.

E quando eles crescerem mais um pouco, mostre a eles a mais contundente história já feita sobre o Holocausto…