segunda-feira, 17 de outubro de 2011

É a senhora sua vó!

capa

Dona Zabé sempre preparou guloseimas.

A minha preferida era rosquinha de pinga. Comia aos borbotões. Sei lá se teve alguma relação com o gosto que tive por porres na adolescência, mas o fato é que adorava aquela cachaça, digo, rosquinhas…

tira02Dona Isabel tem 86 anos, é lúcida (a não ser quando confunde os nomes dos netos), religiosa, mora na praia e caminha todos os dias. Dona Zabé é minha vó, mas não é muito diferente da sua.

Mas Dona Zabé além de minha vó, é com certeza – junto com todas as outras avós do mundo – a vó do Jean.

Só pode ser.

Tá bom, não lembro dele de visita lá em casa. Nunca o vi comer aqueles deliciosos bolos regados a leite de coco e também nunca dividi com ele a raspa da tigela. Nem a colher de pau lambuzada de calda de açúcar endurecida eu lembro de ter dado pra ele.

Ele pode até não ser o meu primo, mas o cara é neto da minha vó, não tenho dúvidas. Da sua também, não se engane. Esse cartunista de 39 anos roubou todas as avós do mundo só pra ele!

De que outra maneira ele saberia que a minha vó conta os remédios como quem escolhe arroz? Ou então, como raios ele poderia saber que não importa quem tenha cometido o pecado, é minha vó quem vai pagar a promessa?

Só sendo neto dela.

tira03Pérai… Tá lembrando da sua vó, né?

O que ela faz? Ouve missa pelo rádio? É fiel ao seu avô que já morreu há vinte anos? Tem um santo na penteadeira para cada ocasião?

Sabia!

O Jean é neto da sua vó também!

Não acredita? Eu posso provar…

Tá tudo documentado. Ele até tentou esconder: disfarçou aqui, mudou os móveis de lugar ali, trocou a foto do retrato…

Mas não adianta, achei a Dona Zabé escondida nas páginas de (Barba Negra – 128 páginas – R$ 12,90).

Jean Galvão é um dos cartunistas mais talentosos do país e o livro reúne cerca de 120 tiras da personagem que ele criou em 2006.

Seu traço singelo, divertido e preciso é visto a todo momento nas mais diversas publicações ou campanhas publicitárias.

Mas não é a sua enorme habilidade técnica que faz desse uma coletânea de tiras memorável.

Jean, matreiro, conseguiu um feito sensacional, digno apenas dos grandes cartunistas: captou a essência de uma personagem facilmente identificável na história pessoal da maioria de seus leitores.

Ler é como revisitar algumas de nossas melhores lembranças e enxergar o humor e docilidade que só uma avó pode ter. As situações representadas em suas tiras vão muito além das piadas sobre senilidade, superproteção, religiosidade ou viuvez, pois atingem em cheio sentimentos ligados a nossa mais tenra idade.

Ler vó tem sabor de rosquinha de pinga, ou de bolo de fubá, se preferir; ou ainda de assistir uma novela com aquela delícia de voz ao seu lado narrando cada uma das situações:

- Olha lá, agora ele mata ela!

- Não entra aí não sua boba!

- Bem feito, ele mereceu! Quem mandou trair ela com a Emengarda? Toma papudo!

Talvez isso explique o sucesso dessa personagem.

Ou talvez ele realmente tenha roubado a Dona Zabé, a Dona Maria, a Dona Amélia…

Jean

Jean Galvão – provavelmente se disfarçando de Lillo para roubar a Dona Zabé.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Não queria? Agora aguenta… (ou como eu acabei virando um roteirista - parte final)

imagesSe algum dia você ouvir um ator dizendo “Shakespeare? Nunca fiz porque não gosto…” , não acredite!

Isso é uma mentira deslavada e o sujeito só disse isso porque 1) não se sente preparado e disfarça sua insegurança usando esse argumento, 2) nunca leu Shakespeare ou 3) não é um ator.

Tudo – absolutamente tudo – que possua dramaturgia sofre a influência desse cara. O teatro depois dele, o cinema, os seriados, as telenovelas, os gibis (sim, os gibis), ninguém escapou da poderosa herança dramática da obra desse inglês.

Nunca ouviu falar de Shakespeare? Engano seu.

Nos amores impossíveis das comédias românticas, nos heróis e em seus nobres atos, na sordidez e na mesquinharia dos avarentos, em  vilões inesquecíveis como Hannibal Lecter ou Odete Roitman e em mais um sem número de personagens e histórias que você ouviu, leu ou assistiu, ouvem-se ecos de figuras shakespereanas como Romeu e Julieta, Otelo, Ricardo III ou Hamlet.

O motivo é simples: o bardo inglês captou em sua dramaturgia as mais sutis nuances da personalidade humana. Suas histórias refletem a história da humanidade, não apenas a anterior à época em que viveu (fim do século XVI e início do XVII), mas também de toda a história futura.

Shakespeare foi um dos poucos na história da humanidade que entendeu (ou ao menos soube retratar) o ser humano em toda sua plenitude.

E entendendo o ser humano, criou histórias que nunca envelhecerão e continuarão a ser adaptadas daqui a 500 anos, com o mesmo vigor.

Então imaginem o meu mais puro pavor ao ler aquelas linhas:

“Os álbuns que gostaríamos de encomendar a você são adaptações de obras de William Shakespeare(…)”

É muita responsabilidade.

Eu poderia ter dito não.

Não seria difícil, quer ver?

“Wellington, olha, agradeço a oportunidade mas é o seguinte: eu não tenho experiência alguma em roteiro para quadrinhos, não acho uma boa idéia, vamos aproveitar que tá tudo no começo e encerrar por aqui, você procura outro cara já com experiência e eu continuo escrevendo no blog.”

Poderia mas não o fiz.

O ator dentro de mim jamais deixaria de aceitar tal desafio.

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Luiz Melo como Macbeth em Trono de sangue, direção de Antunes Filho. Ensaio fotográfico de Emidio Luisi

Mas como diabos você adapta alguém que já foi encenado milhares de vezes, adaptado para todas as mídias existentes, estudado, dissecado e reinventado?

Srbek nesse caso me fez um enorme favor ao revelar que a linha editorial da coleção se pautaria pela fidelidade aos textos originais, sendo permitida apenas a adaptação da linguagem aos nossos tempos, obedecendo – claro – as limitações e liberdades narrativas próprias dos quadrinhos.

Adaptar uma obra clássica para uma outra mídia que não a sua original não é uma tarefa fácil. Cuidados devem ser tomados para tornar a história inteligível sem descaracterizá-la.

Pegar um texto de teatro e encená-lo é um processo natural, mas transformá-lo numa história em quadrinhos é, para se dizer o mínimo, ousado. Fazer isso com Shakespeare é simplesmente uma tarefa insana.

Por mais influência que o bardo inglês exerça sobre as mais diversas formas de entretenimento, o que eu faria ali seria transpor uma história imortal para um gibi que seria lido por uma imensa maioria que nunca teve contato com o texto original.

Em outras palavras, eu, o Wanderson, o Wellington e a Nemo seríamos os responsáveis por apresentar um texto original de Shakespeare pra uma galera que talvez nunca tenha ouvido falar no nome do bardo.

É claro que paranóico do jeito que sou, quase enlouqueci. Não com os prazos, esses geraram o estresse normal que geralmente compromissos com data marcada geram e foram cumpridos à risca, tampouco com o processo de aprovação do roteiro – e em relação a isso fica aqui meu agradecimento pessoal ao Wellington, que pacientemente sugeriu pequenas alterações e adaptações de ordem narrativa que, confesso, só aumentaram a qualidade do álbum – o que, aliás, é o trabalho de um editor.

O que pegou mesmo foi o peso da responsabilidade em – numa única tacada – interpretar todos os personagens de uma peça de Shakespeare!

Mas não vou contar agora a doideira que foi adaptar Shakespeare. Guardarei isso para a época do lançamento, já que é a única coisa que posso fazer, visto que seria muito deselegante (e pretensioso) resenhar o próprio gibi…

E quanto mais perto chega da data do lançamento (que ocorrerá em Belo Horizonte, no FIQ, à partir de 09/11) mais penso na aventura e loucura que foram aquelas semanas iniciais.

Nos vemos então no FIQ!

Se estou com medo?

Caras, eu estou apavorado…

letras-novo

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Eu sei que estou atrasado, mas…

… a Faculdade me pegou de jeito e tive que priorizar as provas. Então não terminei ainda a última parte. Peço desculpas à galera que tem acessado e prometo que amanhã a noite (nem que eu vare a madrugada do feriadão) postarei a última parte.

Valeu a todos!

Lillo

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Shakespeare?!? Tô dentro! (ou como eu acabei virando um roteirista - parte II)


- Ele falou que você vai fazer o quê ?

Minha esposa estava incrédula do outro lado da linha. Acendi outro cigarro, na guimba do anterior.

Sim, poucos minutos antes Wellington Srbek, editor da Nemo, havia me convidado a fazer um álbum de quadrinhos.

Não disse do que se tratava, falou apenas quem seria meu parceiro na empreitada, o talentosíssimo Wanderson de Souza.

Eu sinceramente não lembro o que respondi na hora. Quem me socorreu foi o amigo Daniel Esteves, depois de ler a primeira parte dessa crônica:

- Eu percebi, rarara : "e…e…eu? Escrever um roteiro? Mas não sou roteirista!"

- Eu falei isso???

- Algo assim… não lembro das palavras exatas, mas voce deixou claro que nunca tinha escrito quadrinhos, ao que o Srbek combateu falando sobre suas matérias e tal, que tinham narrativas nelas... que você se sairia bem, que voce faz teatro, etc, etc, etc.

E deve ter sido assim mesmo. O fato é que ali estava eu, em frente a HQMix, acendendo meu terceiro cigarro e ainda sem entender o que estava acontecendo.

Ou o Wellington havia enlouquecido ou sabia mais do que eu. Dez meses depois fica claro que naquele momento Wellington estava bastante lúcido. Mas eu já chego lá.
Terminada a reunião, fomos eu, o Wellington, o Will e o Daniel comermos algo na Paulista. O que vou dizer aqui pode ocasionar uma quebra justificada de contrato, mas desconfio que o mineiro estava se deliciando com aquela situação.

Contando por baixo, naquela mesa tinha uns dez prêmios HQMix e mais uma porrada de Ângelo Agostini.

O que eu tava fazendo ali? Do que aqueles caras estavam falando? Como assim eu ia fazer um gibi? Por quê exatamente eu fui pedir um x-bacon? Aquilo tudo tava me dando uma azia infernal…

Eu tinha que saber o que estava acontecendo. Tenho uma necessidade mórbida de racionalizar tudo, deve ser efeito colateral pelos excessos da juventude. Então, na primeira oportunidade que tive a sós com o Wellington (acho que estávamos na FNAC) perguntei sem rodeios:

- Você tem certeza do que cê tá fazendo?

Ele tinha certeza. Aquilo era sério.

Não sejamos hipócritas. Uma chance assim não bate à sua porta todo dia.

Nunca tinha feito um roteiro e era um completo desconhecido no meio. A meu favor apenas um blog de resenhas em forma de crônicas.

A realidade me atingiu como um raio horas depois, voltando de carona com o Daniel, debaixo de um dilúvio bíblico, que transformou um percurso de 25 minutos numa viagem de mais de uma hora.
Tenho que confessar que foi divertido. Desviamos de uma Radial Leste (a principal via de acesso para a Zona Leste de São Paulo) totalmente alagada apenas para cairmos numa viela da Móoca que mais parecia um rio.

HQMIX2- Será que dá?

Eu pensei comigo: “Esse maluco não vai enfiar esse Renalt Clio nessa lagoa… ele não vai fazer isso”.

Bem se via que eu ainda não o conhecia…

- Mano! Que cê tá fazendo?

Bem, ele estava atravessando um rio. E eu pensando: “Vou morrer afogado antes de conseguir fazer esse gibi…”

Enquanto eu me recuperava do susto, o Daniel – como se atravessar o Rio Amazonas num carro anfíbio fosse a coisa mais normal do mundo – comentou com a maior naturalidade:

- Putz! Você vai fazer um álbum! Como foi isso?

Aquilo me pegou de surpresa. O Daniel é um dos caras mais talentosos da atualidade, seus quadrinhos são uma coisa rara e tem o mesmo delicioso sabor de um bate papo num boteco. O cara está há anos batalhando e dando a cara a tapa. O Will também. E eu era apenas um cara que escrevia num blog e tinha nome de chupeta.

Aquela pergunta merecia uma resposta sincera. Não seria educado responder de outra forma ou simplesmente fugir do assunto.

- Não sei meu velho. O cara gosta da forma como eu escrevo no blog e acha que eu posso fazer um gibi.

Mas não era apenas isso.

A resposta às minhas perguntas chegaram um mês depois, num longo e-mail explicando os pormenores do projeto, prazos, valores e coisas do tipo. Já perto do final, algo que me deixaria de cabelo em pé nos 60 dias seguintes:

“Os álbuns que gostaríamos de encomendar a você são adaptações de obras de William Shakespeare, voltadas ao público de 11 a 15 anos, sendo: ROMEU & JULIETA por Marcela e Roberta e SONHO DE UMA NOITE DE VERÃO por Lillo e Wanderson.”

Eu sou ator.

Tenho 20 anos de teatro.

Dez deles num dos mais fascinantes e longevos grupos do mundo.

Caras, aquilo era praticamente como oferecer heroína pra um viciado…
(termina no domingo)

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Como assim eu vou fazer um gibi? (ou como eu acabei virando um roteirista - parte I)

Vamos começar do começo.

Eu sou um cara de teatro.

De um tipo bem específico de teatro.

Esqueçam a maquiagem branca na cara, as performances que sempre rolam quando a figura está chapada, seja numa balada ou num batizado, as poses afetadas e aquela voz carregada que mais parece cria do inferno do que garganta de gente de verdade.

Essa fase eu vivi dos 17 aos 27, depois cansei.

Foi justamente quando encontrei o Teatro Popular União e Olho Vivo. Não sabe de quem estou falando? Não esquenta, clica na postagem que fiz sobre o plágio envolvendo o gibi Chibata e você vai entender melhor.

Sentado, como Mão Negra, um dos líderes da Revolta da Chibata, na peça "João Cândido do Brasil".
E foi onde eu passei os últimos dez anos da minha vida. Um lugar mágico, onde aprendi praticamente tudo que sei sobre teatro, arte e cidadania.

Por razões pessoais, decidi, lá por novembro do ano passado, que me afastaria do grupo por um tempo. Naquela época – embora eu ainda não soubesse – já estava afundado até o pescoço nos quadrinhos. Um sujeito se encarregaria de colocar o pé na minha cabeça e me afundar de vez, mas eu já chego lá.

Só que foram dez anos de minha vida naquele grupo, correndo a periferia da cidade, viajando o Brasil, sorrindo, chorando, vivendo…

Eu não sairia assim, tão impune.

Eu de amarelo no meio, num puta de um juiz ladrão em "Barbosinha Futebó Crubi - Uma Estória de Adonirans"

A verdade é que quase enlouqueci. Naquele galpão do bairro do Bom Retiro, colado no centro velho de São Paulo, está boa parte de minha história e – sem dúvida alguma – muito da alma que penhorei quando decidi ser um artista.

Sou capaz de interpretar um assassino cruel numa cena e, três minutos depois, enquanto o público ainda está tentando processar a carga dramática que acabou de receber, entrar travestido de uma drag bêbada. Consigo fazer uma voz num registro agudo e alterá-lo para o grave dentro da mesma fala. Tenho uma voz potente, raras vezes precisei de microfone em apresentações a céu aberto…

Bela bosta!

Sou ator e quase não consegui escapar de um simples conflito emocional por uma decisão que eu mesmo tomei!

E era nesse pé em que as coisas estavam quando em janeiro, numa visita a Belo Horizonte, conheci pessoalmente o amigo e roteirista Wellington Srbek, com quem já trocava intensa correspondência desde julho do ano passado.

Entre muito bate papo e uma ótima pizza, ele me convidou a participar de uma reunião que faria dali a duas semanas, aqui em São Paulo, com uns caras com quem ele estava querendo trabalhar.

Foi naquela noite que descobri que ele havia acabado de se tornar o editor da Nemo. Como é de hábito, fiquei de boca calada.

Mas estava empolgadíssimo! Meu amigo era agora um editor! Publicaria quadrinhos e tinha acabado de me convidar pra uma reunião secreta, com uns tipos perigosos, armados até os dentes de pincéis e nanquim…

Na data marcada, fui pra tal reunião com a esperança que o Srbek me convidasse pra escrever o texto de introdução de algum álbum. Afinal, por qual outro motivo ele teria convidado um resenhista para a reunião?

Confesso, eu sou uma besta às vezes…

Não vou contar quem estava ou não na reunião e nem o que foi conversado. Alguns nomes não são segredo, além do Wellington e de mim, o Will estava por lá para fechar sua participação em Ciranda Coraci e o Senhor das Histórias. O Daniel Estevescom quem já havia cruzado algumas vezes mas nunca havia sido formalmente apresentado – estava ali para fechar sua participação num dos álbuns. O Jozz também foi, embora só tenha saído de lá sabendo que faria um álbum para a Nemo, mas ainda sem saber que se tratava de Otelo, de Shakespeare. O Wanderson de Souza também estava lá, tão perdido quanto eu.

Srbek & Will, no lançamento de Senhor das Histórias e Ciranda Coraci

E eu pensando na tal da introdução…

Em um determinado momento, entretanto, depois de nos contar o que era a Nemo e qual seria seu projeto editorial, o mineiro vira pra mim e pro Wanderson e atira à queima roupa, sem qualquer chance de defesa:

- Aliás, é melhor vocês sentarem mais perto e virarem os melhores amigos, porque provavelmente  
vão fazer um álbum juntos

Eu não sei exatamente que cara eu fiz, mas deve ter sido de um pavor absoluto. Só o Wellington percebeu. Se o Will reparou, foi educado em disfarçar.

Como assim eu faria um gibi???
(continua na próxima quinta)