quarta-feira, 13 de abril de 2011

Sombras e Sonhos

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Trabalho na Praça da Sé. Você não precisa ser paulistano para ter ouvido falar dela. Ela é famosa, já foi palco de lutas pela democracia, de assassinatos, de shows… Tem uma catedral lindíssima, notória por sua arquitetura confusa e multiplural e exatamente por isso uma das mais belas do país.

Mas a Praça da Sé também tem coisas estranhas, que possuem um código próprio. São seus meninos banhando-se na fonte e assaltando os passantes, seus bêbados, seus ambulantes e até seus vigaristas.

E tem também as pessoas que moram por lá, dormindo debaixo de marquises ou nos bancos ao relento. E algumas delas são fascinantes.

Tem um cara que eu chamo de “Espanhol”. O chamo assim porque ele cismou que sou filho de um espanhol que ele conheceu quando ainda era guri, lá nos anos 40.

Vive me filando um cigarro, mas não me importo. Ele é uma figura e merece esse pequeno e desgraçado prazer.

E é louco de pedra também (mesmo), do tipo que não fala coisa com coisa. Daí outro dia, entre uma visão apocalíptica e outra, ele simplesmente pára, arranca uma margarida do canteiro e a coloca carinhosamente entre os cabelos de uma bebezinha que passava por ali com a mãe.

Fico imaginando o que fez um homem capaz de um gesto desses enlouquecer. Ou então se uma gentileza desse tamanho não é simplesmente mais um ato de loucura.

Que tipo de sombra seria tão forte a ponto de destruir os sonhos de um homem e tirar-lhe a razão?

Nunca saberei. Mas nesse fim de semana tive uma oportunidade para refletir sobre o assunto. E a fonte da reflexão veio de algo insuspeito e – obviamente – maravilhoso exatamente pela sua aparente insuspeição.

Três Sombras, de Cyril Pedrosa (Quadrinhos na Cia, R$ 39,50) é um gibi poderoso, como poucos nos últimos anos.

O francês de nome estranho para um francês também produziu uma história estranha pra um gibi.

O casal Louis e Lise vive tranquilamente com seu pequeno filho Joachim. Isolados no bosque, tocam tranquilamente suas vidas, repletas de pequenos prazeres, até que um dia avistam três sombras no alto da colina. Começa ali o pesadelo particular de cada um e uma luta desesperada pela vida.

Não há como não ficar curioso. É uma idéia atraente, cheia de possibilidades… Mas também com tudo pra ser um fracasso, se não fosse absolutamente genial.

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Como disse, a vida de Louis e Lise e de seu pequeno Joachim seguia tranquila até a aparição das sombras. Elas surgem sem aviso e não dizem a que vieram. E é nessa dúvida e em sua inevitável descoberta que toda a estrutura narrativa da história é montada. Contar mais que isso comprometeria de forma definitiva as surpresas reservadas ao leitor.

Mas sempre há um jeito de contar o que não deve ser contado e ainda assim manter intactas as surpresas. Aliás, é esse um dos melhores recursos narrativos utilizados por Pedrosa: suas pistas entregam a história antes do primeiro terço do gibi, mas tudo é tão bem contado que você não as percebe e é exatamente em suas descobertas que residem as maiores doses de emoção dessa encantadora fábula.

Três sombras é ambientada em uma época imprecisa. Algumas pistas indicam que a história se passa em algum ponto entre os séculos XVI e XVII, seja pela utilização de caravelas no transporte de passageiros (a maior contribuição náutica dos portugueses ao mundo), seja na já existência de armas de fogo portáteis (ambas invenções surgidas no século XV) ou ainda na estrutura das cidades, bem mais sofisticadas que os feudos medievais. Um lugar perfeito para despertar a imaginação do leitor e propício ao clima sobrenatural que Cyril imprime em sua fábula.

Pedrosa é um narrador habilidoso e parece saber disso. Ao situar sua história num período tão impreciso mas ainda assim reconhecível, a torna propriedade de qualquer povo ocidental, seja francês, português, italiano ou espanhol e – por extensão histórica e cultural – americano (de Américas, e não apenas a de nossos pretensiosos primos do norte).

Outra preciosa pista flutua nas águas que permeiam toda a narrativa. Elas possuem ligação intíma com as sombras do título e são alusivas às principais obras da literatura medieval e renascentista, de Gil Vicente a Dante, passando obrigatoriamente pelo emblemático Os Lusíadas.

Mas a maior e mais sutil delas reside em um diálogo entre Louis e o contramestre do navio que os transporta para longe das sombras. É ali que Cyril revela toda a beleza da trama, dando razão ao desesperado Louis ao mesmo tempo que lhe nega qualquer chance de sucesso.

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Pedrosa também não poupa habilidade na construção de seus personagens coadjuvantes: a velha mística, conhecedora dos caminhos entre a vida e a morte, o inescrupuloso mercador de escravos, a ofendida cigana e a desesperançosa negra algemada, o sórdido vendedor de bilhetes ou o traiçoeiro barão.

Nenhum deles está ali gratuitamente. Todos sofrem os efeitos de suas ações, mesmo que tal ação seja ter vivido demais – para o bem e para o mal. Até o cão da família possui seu papel, em mais uma entre tantas sutilezas.

Três Sombras é uma história sobre o valor da vida e sua finitude. Sobre o amor sem limites e sua cegueira. Três Sombras nos ensina que a vida pode ser irremediavelmente arruinada, mas também nos mostra como cada minuto de nossa breve existência é importante, em como o amor pode enlouquecer e de que forma a loucura pode ser curada através desse mesmo amor que desgraçou qualquer traço de racionalidade.

Três Sombras é uma poderosa alegoria sobre a vida, que nos faz refletir sobre qual caminho estamos tomando em busca de uma suposta felicidade que, no final das contas, pode nem estar onde achamos que esteja.

Cyril criou um clássico que será lido por muitas gerações.

E na Praça da Sé, uma mãe revoltada arranca violentamente uma flor dos cabelos negros de sua pequena filha. O Espanhol fica ali olhando, o cigarro pendendo da boca, sem entender bem porque uma flor tão bonita está no chão e não nos cabelos da criança.

No segundo seguinte volta às suas profecias apocalípticas.

A mulher não entendeu que a vida é feita de sombras e sonhos. O Espanhol, por sua vez, nunca esquecerá… 

5 comentários:

  1. Salve, conheci você na HQ Mix,agente bateu um papo corrido, mas agradável, então passei aqui para conhecer seus textos, gostei bastante, principalmente do início, a praça da sé.
    quando quiser dá uma visita lá no meu blog.
    www.ferrez.blogspot.com

    grande abraço
    Ferréz

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  2. É uma honra te ver por aqui Ferréz! Realmente, apesar da brevidade, foi um encontro muito agradável e divertido. Obrigado pela visita. E pra quem quiser conhecer, visite o blog do Ferréz e veja o importante trabalho que ele desenvolve na periferia de Sampa. É de pessoas assim que a gente precisa pra mudar a cara do país.
    Um grande abraço!

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  3. Olá.

    Esse é o primeiro texto que leio em seu blog. Não o conheço ainda, então peço desculpas se eu parecer muito chulo nesse meu comentário mas... que do caralho, hein? Muito bom! À altura da obra. Gostei muito de Três Sombras. Acho que cada um toma um livro, uma história e se apropria dela, relaciona ela com sua própria vida. Muito boa sua introdução, muito bacana a relação que você construiu com esse "Espanhol".
    Parabéns!
    Grande abraço!

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  4. Liber! É um prazer tê-lo por aqui.
    É exatamente por isso que não ativei a ferramenta moderação de comentários, para que as pessoas digam o que pensam ou sentem extamente da maneira que pensaram ou sentiram. Então não esquente com o que você chamou de muito chulo, porque não foi! Obrigado pelos elogios, a proposta deste blog é mostrar as resenhas em de forma que quem as leia tenha interesse em ler também a obra resenhada. Espero ter conseguido. E Três Sombras é algo realmente fantástico não? Todas as pessoas a quem pergunto são unânimes em dizer que esse é um dos melhores gibis que leram. Um grande abraço e apareça sempre que quiser!

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  5. Muito boa a sua resenha! E cheguei nela ao buscar referencias a meu livro, Sombras e Sonhos. Boa sorte, colega e continue escrevendo!

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