quarta-feira, 18 de agosto de 2010

“Beijo mulher na boca para me sentir menos prostituta”

imagesA frase acima é de Arlete, prostituta, cafetinada pelo próprio pai. Qualquer um pode encontra-la, basta pagar alguns cruzeiros em qualquer sebo da cidade. Procure por Nelson Rodrigues, na estante de teatro. Precisamente, procure pela peça Os Sete Gatinhos.
Mas ela também poderia ser dita por qualquer uma das muitas personagens rodrigueanas que habitam O Corno que Sabia Demais e Outras Histórias de Zózimo Barbosa, ótimo álbum de Wander Antunes inspirada no Universo do famoso dramaturgo, publicado ainda na fase que a Pixel se preocupava com quadrinhos de verdade.

E Wander acerta em cheio. A ambientação da história no Rio dos anos 50 é o grande trunfo do gibi.

Nelson Rodrigues inaugurou em 1943 – ao lado do brasileiríssimo diretor polonês Ziembinski – o moderno teatro brasileiro, com a peça Vestido de Noiva. Jornalista, escritor, cronista e dramaturgo, retratou o cotidiano carioca como poucos. E a transposição narrativa daquele Rio de Janeiro aos quadrinhos foi feita com rara competência por Wander.
O autor – confesso fã do dramaturgo – foi ainda mais longe: a ele não bastou a ambientação, reproduziu também a essência da narrativa rodrigueana.
Todas as situações e personagens típicas do dramaturgo desfilam confortavelmente pelas páginas do Corno (apelido carinhoso do gibi nos fóruns e e-mails): o boa vida mulherengo que não perdoa nem mulher casada, as “polacas” (ainda que apenas textualmente), a mulher traída, o corno, o policial truculento, o marido covarde, a santa transformada em adúltera por amor e – claro – o canalha oportunista.

E é esse canalha – imoral, cínico e egoísta – a personagem principal do Corno: o Detetive Zózimo Barbosa.
Zózimo surgiu nas páginas da extinta revista Canalha ( que trazia o sugestivo subtítulo “Quadrinho pra quem não torce pelo mocinho”), editada por Wander Antunes e que trazia em suas páginas gente de peso como Laerte e José Ortiz.
Entre as centenas de provas de sua total falta de caráter encontradas nas 07 histórias do álbum, uma das mais improváveis está em “Matando um Amigo”. Ao ser procurado por um marido traído, Zózimo se vê diante da imoral proposta de receber uma bolada para matar o safado que andava comendo a esposa do corno (um dos muitos que povoam o gibi) – que no caso era o Bonitão, seu amigo.
Zózimo não titubea: “Se eu recusasse, o sujeito contratava outro e aí eu perdia uma boa grana… E isso eu não ia deixar acontecer. Pelo visto ia matar um amigo!”.

E se o roteiro segura bem as pontas, a arte não fica para trás. Wander revela que Zózimo teve um primeiro episódio desenhado por Mozart Couto. Entretanto é difícil imaginar o detetive no traço de Mozart. Culpa de Gustavo onçaMachado, que criou uma concepção visual perfeita para a personagem e uma ambientação ímpar para seu universo. Ora nos remete ao estilo linha clara dos quadrinhos europeus, ora nos faz enxergar o Amigo da Onça, imortal criação de Péricles.
Mas a arte do álbum foi creditada a Gustavo Machado e Paulo Borges, sem, entretanto, deixar claro quem desenhou o quê. Não chega a ser prejudicial, mas foi uma danada de uma falha editorial.

Outro problema é a linguagem extremamente datada, com o uso contínuo de gírias como “batata”, “espeto”, “papagaio”, comuns naqueles tempos.
Quem está acostumado com o universo rodrigueano não terá problemas, mas o reconhecimento das situações em que tais gírias são usadas e o que querem dizer pode demorar um pouco para quem nunca viu, leu ou assistiu as adaptações para o cinema de peças como Boca de Ouro, A Falecida ou Os Sete Gatinhos.

Mas estou sendo preciosista ao extremo. O Corno que Sabia Demais é um ótimo gibi, que vale o investimento, ainda mais porque foi lançado em 2007 e pode ser encontrado em promoções na Internet com relativa facilidade (foi assim que consegui o meu).
Então aproveitem a viagem. Não é todo dia que podemos passear pelo Rio de 1954 e espiar tanta devassidão, intriga e bom humor.

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