domingo, 14 de agosto de 2011

Produtos e Produtores

Tem gente que você acaba de conhecer e não precisa de mais do que alguns minutos pra sacar que o cara ainda vai fazer barulho.
Nos quadrinhos, longe dos holofotes que o andam iluminando ultimamente por conta da recente (e merecida) exposição de brasileiros no mercado estadunidense, existe todo um mundo que a maior parte dos leitores de quadrinhos (sobretudo de comics americanos) desconhecem, mas que pulsa a um ritmo frenético.
Algo que convencionamos chamar de mercado independente.
Subterraneo_capa_sub36_will
Um conceito totalmente equivocado mas bastante difundido, atribui ao mercado independente uma suposta responsabilidade sobre a “má qualidade” dos quadrinhos nacionais, à revelia de todas as provas de vitalidade e criatividade que ele tenha demonstrado nos últimos anos.
Basta uma rápida visita aos diversos fóruns especializados em quadrinhos (em uma parte bastante especifica dos quadrinhos, é bom lembrar) para cruzarmos com palavras como “lixo”, “merda” e “mal feito”. Não discordo que parte de nossa produção não possua a devida qualidade, mas me pergunto: qual mercado não sofre o mesmo desequilibrio qualitativo em sua produção?
Ou quem em sã consciência vai dizer que aquela aberração chamada Saga do Clone é merecedora da enorme tradição de um dos personagens mais bacanas e populares de todos os tempos? E para não dizer que só pego no pé da Marvel, quem poderia prever, ao ler O Derrotista, que o cara que escreveu aquilo seria no futuro o autor de Palestina e Gorazde?
Obras boas e ruins são comuns em qualquer mercado, mesmo nos mais estruturados, como o Oriental, o Americano ou o Franco-Belga (tá, lá é mais difícil, mas também acontece).
O que não podemos é, sistematicamente, acreditar que os quadrinhos nacionais não possuem qualidade e que o mercado independente é o grande vilão da história.
necro_02Colin publicou durante anos no mercado independente. Laudo Ferreira, André Diniz, Wellington Srbek, Danilo Beyruth e tantos outros nomes que hoje começam a ser apontados como referências nos quadrinhos nacionais, já publicavam excelentes trabalhos em gibis que variavam do papel jornal à xerox em A4 dobrado.
Acontece que durante muito tempo, o mercado independente era a única opção. E os caras tinham que sambar pra se fazerem ouvidos, pois as editoras só queriam (e muitas ainda só querem) um novo Maurício, um novo Ziraldo ou – o máximo da ironia – um novo trio de alucinados como Laerte, Angeli e Glauco (acho que não preciso contar aqui o barulho que eles fizeram na década de 80, vindos diretamente do mercado independente e com uma produção totalmente não convencional, muito mais próxima do underground de Crumb e Shelton, do que o padrão Turma da Mônica).
Mas o rolo compressor chamado informática – e com ela a internet – tem mudado radicalmente a forma de se produzir quadrinhos. O barateamento dos processos gráficos que envolvem sua produção e a incorporação de softwares de edição e imagens no cotidiano dos profissionais tem proporcionado um boom qualitativo no mercado independente. A xerox deixou de ser a principal opção e se tornou opção estética.
Outro dia estava ali na HQMix, fumando um cigarrinho com o Gual, e conversávamos justamente sobre os meios de produção atuais, da facilidade em se produzir novos formatos, novas cores (não exatamente novas, as cores sempre estiveram por aí, mas agora conseguimos imprimi-las), quando nos chega um carinha barbudo, simpático, acompanhado de sua também simpática esposa.
Após um abraço afetuoso no Gual, somos apresentados. O cara se chama Rafael Química e estava ali para apresentar o seu Produto. Não, não é um trocadilho, o gibi do cara se chama Produto e conta as desventuras de um tomate que sonhava ser modelo de natureza morta para algum pintor famoso.
Idiota? Ingênuo? Uma “merda” como dizem os pseudo entendidos em quadrinhos?
Não, na verdade está mais para genial.
Química aproveita o mote nonsense para produzir uma sarcástica história sobre como as coisas podem acontecer na indústria, seja ela qual for, e em como os sonhos e anseios de alguém podem dar terrivelmente errado – ou certo – nessas terríveis engrenagens que movem o show business. Uma ácida crítica que nos leva a uma honesta reflexão sobre os meios de produção e seus valores éticos e financeiros.
E tudo isso num bom humor de fazer inveja a qualquer um, a começar pela capa serigrafada, que simula uma banal caixinha de papelão dessas que habitam qualquer prateleira de supermercado (numa referência à maior e mais genial piada da história da arte). Dividido em duas histórias, Produto nos mostra dois pontos de vista: o do surreal tomate e o de seu incansável agricultor. A mesma história, dois caminhos diferentes que se não levam ao mesmo lugar, levam à mesma constatação e que se desdobram em outros pontos de vista.
Cínico, divertido e extremamente bem feito, Produto corrobora tudo aquilo que disse sobre o equivocado conceito de que os quadrinhos nacionais não possuem qualidade e vai além: mostra que o mercado independente deixou de ser a única opção e é hoje (como sempre foi, mas hoje mais do que nunca) o principal veículo para aqueles que tem algo a dizer além da obviedade enlatada que (ainda) pretende imprimir um suposto padrão de qualidade aos quadrinhos e ditar as regras do que deve ou não ser lido.
Como disse, às vezes não precisamos de mais do que alguns minutos para perceber que um cara ainda vai fazer barulho.
Rafael Química é um deles.
TOMATECUBO
Para conhecer mais sobre o trabalho de rafael Química, acesse http://quimicarafa.blogspot.com/

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