domingo, 19 de junho de 2011

Histórias Inesquecíveis: Aberrações no Coração da América

capa

Comprei Aberrações no Coração da América (Devir Livraria – 2005) por um único motivo: o nome de Steve Niles na capa.

Estava num sebo e o preço era ótimo. As belíssimas ilustrações de Greg Ruth pesaram bastante na decisão. Mas era o que o nome de Niles me lembrava o que eu queria ver na história. O cara havia criado a melhor história de vampiros que eu havia lido em muito tempo. Seu 30 Dias de Noite é uma paulada. Esqueçam o filme. Apesar de uma adaptação razoável, não chega nem aos pés do gibi feito em parceria com Ben Templesmith.

E daí eu cruzo com um gibi escrito pelo mesmo cara, com a palavra “Aberrações” no título…

Pois bem. Não era nada do que esperava. Nada de vampiros, nada de monstros como o título sugeria.

Mas o que encontrei foi muito melhor…

A história toda começa numa cidadezinha de fim de mundo dos Estados Unidos, quando, anos antes, várias mulheres deram à luz ao mesmo tempo.

Mas algo soava horrivelmente errado. Seus filhos não eram normais, eram disformes, estranhos. A decisão tomada foi o assassinato daqueles horrendos bebês.

Mas nem todos morreram, alguns foram criados às escondidas, em porões e celeiros, numa situação sub humana. E agora eles estavam crescidos, e loucos para conhecer o mundo lá fora…

E aqui terminamos o que vou contar sobre o enredo da história. Mais que isso já estaria fazendo um resumo, não uma resenha.

Vamos falar das coisas que tem ali dentro o do que elas revelam.

prev_aberra_1gO roteiro aparentemente aponta para aqueles filmes de ficção científica da década de 50, recheados de monstros vingativos e sem qualquer explicação plausível para a origem de tão horrendas criaturas.

Realmente, o roteiro de Niles não explica absolutamente nada sobre as terríveis deformações das crianças ou o motivo delas terem nascido ao mesmo tempo.

A intenção ali não é fornecer aos leitores qualquer dado científico mentiroso que justifique o surgimento das ditas “aberrações”. A história é o que é.

A metáfora é muito mais poderosa. Trata do rito de passagem entre a fase infantil e a adulta e como as coisas podem dar terrivelmente errado. A relação de amor e descoberta vivenciadas por Trevor (o irmão mais velho) e Will (o mais novo e uma das crianças indesejadas) é delicada e trágica. Nesse sentido, Aberrações no Coração da América é uma história sobre a vida e seu aprendizado, com amores e decepções típicas da adolescência.

Mas a história também estabelece uma sutil relação com renascimento da nação norte americana pós grande depressão, se aproximando assim do romance Homens e Ratos, de John Steinbeck, de 1937. As próprias características físicas e psicológicas de Trevor e Will nos remete aos personagens Lennie e George, protagonistas do romance.

prev_aberra_4gÉ a mentalidade do velho sistema de vida norte americano condenando-se a uma morte lenta, à medida que uma nova, poderosa e irresistível vivacidade tomava conta do povo estadunidense. Essa sutil relação é exteriorizada no discurso do jovem Trevor para xerife Tuck, já nas últimas páginas do gibi, e no trágico destino deste pelas mãos de Bo Clague, pai de Maggie e Roy, outras duas crianças da trama.

Mas Aberrações no Coração da América fala principalmente da intolerância. Ao tornar alvo do ódio crianças inocentes apenas porque são diferentes daquilo que almejamos, Niles cria uma ferrenha e mordaz crítica ao racismo, qualquer que seja a maneira em que ele se apresente.

Num tempo em que fechamos os vidros quando vemos um guri no farol ou – pior – o pré julgamos um assaltante ou assassino sem ao menos lhe oferecermos qualquer chance de um destino diferente, num tempo em que cobramos segurança pública mas não nos interessamos pela qualidade da educação formal fornecida a aquelas crianças cujos pais não podem pagar a irreal mensalidade de um colégio particular, Aberrações no Coração da América deixa de ser um gibi ( na acepção pejorativa que normalmente dão ao termo) e se torna uma mensagem poderosa e trágica.

As crianças nos faróis, com seus mal aprendidos malabares, não pediram a situação que lhes foi imposta por séculos de corrupção e mau uso do erário público. Seus pais, seja qual for a culpa que carregam, são inocentes em pelo menos uma questão: a de não conseguirem quebrar padrões de comportamento que se repetem por gerações e que agora se transmutam em truques circenses desesperados por um trocado, por um momento de atenção.

E nesse sentido, Aberrações no Coração da América fala muito mais sobre o que somos do que uma simples história em quadrinhos poderia sugerir.

Um gibi obrigatório, gostemos de quadrinhos ou não.

prev_aberra_2g

Esta resenha foi escrita ao som de Um Labirinto em Cada Pé, de Romulo Fróes, e Feito pra Acabar, de Marcelo Jeneci. 

Para ler outras resenhas minhas ou saber o que rola no mundo dos quadrinhos acesse o Quadro a Quadro.

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