domingo, 22 de maio de 2011

Noturno e soturno.

20110521_NoturnoEstava concentradíssimo numa planilha lá no trampo quando ouvi a pergunta: quanto no Barça e Real?

Bolão de futebol é coisa comum num banco. Campeonato Paulista, Carioca, Gaúcho, Brasileiro e até Europeu! Pensei por 03 segundos, “O Barça acabou de perder a Copa do Rei pro Real, não vai perder a 2ª seguida”

- Bota aí: dois a zero pro Barça!

E ainda cravei: dois gols do argentino.

Só eu e o Cidão acertamos: R$ 88,50 para cada um.

Já dizia com seu sotaque carregado a velha Joana, minha bisavó, na sabedoria dos seus 97 anos: “Dinero de juego suço (sujo), não pode ficar en las manos…”. Como não sou de desobedecer os mais velhos – ainda mais os mortos – separei os R$ 3,00 do investimento original e torrei os R$ 85,50 restantes.

Metade foi gasto na Cacau Show, numas caixas de bombons bem bacanas pra Cátia – a minha patroa. A outra metade foi pro vício.

E já que era o Messi que estava pagando, por coerência comprei um gibi argentino: Noturno. E todo o humor da situação acaba aqui.

Noturno (Zarabatana – Coleção Fierro nº1 – R$ 41,00) não é um gibi comum, pelo menos não por essas bandas de cá. Primeiro porque foi feito por um argentino e no geral temos a péssima mania de achar que só os americanos e japoneses fazem quadrinhos – o talentoso Salvador Sanz – segundo porque não estamos acostumados aos quadrinhos de lá.

E nosso desconhecimento da produção vizinha pode causar algumas surpresas.

Mafalda é uma velha conhecida, mas a invasão de quadrinhos como Macanudo (Liniers)  e a revista Fierro (que traz um monte de gente bacana) nos mostra o quanto ainda podemos aprender com nossos hermanos. Os quadrinhos argentinos são ótimos e lhes transferir a velha richa existente entre Brasil e Argentina seria – para se dizer o mínimo – infantil.

E de infantil esse belíssimo álbum da Zarabatana não tem absolutamente nada. Noturno conta a história de uns pássaros grandões, vindos de um mundo antigo e estranho e que pretendem invadir a terra. Para isso trocam de corpos com uns humanos que não sabem direito o que está acontecendo.

Satisfeito? Então pode parar de ler a resenha porque o gibi é isso mesmo.

Não está satisfeito né? Então vamos lá…

nocturno7

A história toda gira em torno de Lucia e Lucio, dois espectadores de um show de magia, que não se conheciam até subirem ao palco como voluntários para um dos quadros do espetáculo: serem transformados em pássaros de fogo.

O Mágico – um cara estranho, com penas no pescoço e uma máscara em bico – promete magia de verdade.

A partir daí teremos uma história alucinante.

A magia, é claro, era verdadeira e Lucia e Lucio começam – cada um em sua rotina – a viverem experiências inexplicáveis. Lapsos de memórias e sonhos estranhos, com ovos servindo de incubadora, pássaros assustadores e árvores gigantescas. Os sonhos transformando-se em pesadelos numa velocidade vertiginosa. E tão rápido quanto, os pesadelos viram realidade.

Num preto e branco de traços belíssimos, Salvador Sanz nos leva a um passeio pela moderna Buenos Aires, sempre na companhia de Lucio ou Lucia. E nos mostra como uma vida comum, de jovens comuns, pode ser uma maldição quando o fator sobrenatural é introduzido.

Um raça antiquissíma flerta com os humanos há tempos. Suas intenções são postas à mesa: tudo faz parte de um plano para uma invasão em massa.

De um lado uma força primitiva, feroz, inteligente e mágica, personificada por pássaros enormes, com anatomias bastante adequadas às suas personalidades.

Do outro dois jovens que não se conhecem mas estão ligados por uma maldição que os coloca em meio a um turbilhão de acontecimentos que pode mudar os rumos da humanidade.

No meio, ora transitando num lado, ora no outro, um ser mágico que não é nem homem, nem pássaro, com inseguranças bastantes humanas e uma ansiedade crescente em retornar ao seu mundo; um cara normal, com uma vida banal, mas que sonha em se tornar um daqueles bichos também (tal qual as menininas de hoje, que sonham com a vida eterna prometida em Crepúsculo), uma força militar que sabe mais do que aparenta e milhares de outros jovens estigmatizados com a mesma desgraça de Lucio e Lucia.

E referências à cultura pop, dezenas delas. Do O Exorcista a O Enigma de Outro Mundo, passando por Aliens  e Um Lobisomem Americano em Londres, mas sem nunca perder de vista Borges, Cortázar e toda a enorme tradição argentina na literatura fantástica, Noturno é um espetáculo aos fãs de uma boa história.

Até o final – aparentemente água com açúcar – é uma homenagem aos velhos filmes B da décadas de 50, com sua mudança de situação surpreendentemente divertida.

Mas Noturno não é um gibi engraçado, sua mistura de sexo, horror, realidade e fantasia se equilibram e se transformam durante a leitura, nos divertindo e nos causando medo.

É fantasia de verdade, de um jeito bom e com um senso de humor estranho. Repugnante e atrente ao mesmo tempo, esteticamente Noturno se aproxima muito dos belíssimos PAG_4 capitulo 2álbuns europeus das décadas de 70 e 80, como Os Imortais (Bilal), Drunna (Serpieri) e Ranxerox (Libertarore e Tamburini), sem nunca desonrar a própria tradição argentina no gênero, imortalizada pelo El Eternauta (de outro gênero – a Ficção Científica – mas ainda assim o maior expoente da fantasia argentina e uma das melhores coisas produzidas nos quadrinhos em todos os tempos).

A Zarabatana Books merece todos os elogios pelo excelente projeto editorial que vem fazendo. Os quadrinhos argentinos são uma atraente opção de leitura e esse Noturno em especial não é o tipo de gibi que se vê todo dia.

Tá… O Messi também merece um certo crédito, afinal foi ele quem pagou a conta.

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