sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Lucas da Feira e os esquecidos da história

“Mas os senhores não acham que existem temas muito mais nobres que a história de um traidor da Pátria?”

A pergunta foi feita a César Vieira em 2000, por um tenente da Marinha, no Rio de Janeiro, durante as pesquisas de campo sobre João Cândido Felisberto, timoneiro que em 1910 amotinou-se com centenas de outros marujos e fizeram a Marinha – e o Brasil – dobrarem-se de joelhos aos revoltosos. Sua reinvidicação? A abolição dos castigos corporais naquela que era uma das mais poderosas forças náuticas de seu tempo. Uma Marinha que possuía os navios de guerra mais modernos do mundo mas que ainda chibateava seus praças, quase que na totalidade negros pegos à força ainda adolescentes para servirem à Pátria.

O episódio ficou conhecido como a Revolta da Chibata e é até hoje um tabú na Marinha. Mas provavelmente você nunca ouviu falar dele. Poucas linhas lhe são dedicadas nos livros escolares e João Cândido, seu líder, morreu na mais completa miséria. Só recentemente foi reconhecido como herói nacional, sob protestos do oficialato daquela Arma.

O Teatro Popular União e Olho Vivo – grupo fundado em 1966 e do qual faço parte há dez anos – sempre primou por contar a história por trás da história, onde o povo é o sujeito da ação e não mero espectador.

Aquela pergunta foi respondida com a estréia do belíssimo espetáculo João Cândido do Brasil – A Revolta da Chibata, em 2001, no Teatro Municipal de Santo André. O texto da peça, de autoria do próprio César, foi publicado em 2003, pela Casa Amarela.

Só contei isso porque poucos dias atrás recebi um pacote da Bahia, de um coletivo de jovens quadrinistas auto denominados Área 71. No pacote uma educada carta explicando o projeto e 03 gibis: Área 71 – uma coletânea de histórias curtas de jovens e veteranos autores baianos; Kuei e a senhora de Sárvar – um mangá sobre um planeta Terra desolado e dominado por criaturas sobrenaturais, de autoria de Marcelo Lima e Joel Santos; e Lucas da Vila de Sant’Anna da Feira, de Marcos Franco, Marcelo Lima e Helcio Rogério.

E foi Lucas da Feira quem me chamou a atenção.

lucas

O gibi conta a história de um escravo fugido transformado em bandoleiro e que atuou na região de Feira de Santana na primeira metade do século XIX. Herói do povo, assassino cruel, psicopata ou  rebelde? Ninguém sabe ao certo. Contado em córdeis, Lucas da Feira se tornou uma lenda popular.

Pela quase inexistência de dados oficiais que permitam a reconstrução de sua vida, essa figura fascinante foi retratada no gibi, misturando as poucas informações existentes com muita inventividade e competência narrativa.

Lucas da Feira é um gibi de gente grande e merece ser lido.

Marcos Franco e Marcelo Lima acerteram em cheio, tanto na contextualização histórica quanto na caracterização dos personagens. O uso de um linguajar próprio daquela região nos diálogos – que poderia se configurar num problema – foi habilmente resolvido. Menos contido do que no recente Bando de Dois, de Danilo Beyruth, os autores utilizaram-se de expressões já assimilidas Brasil afora graças às novelas televisivas e a música popular. E caso tenha alguma palavra que você não conheça não há problema: no final do gibi você encontrará um pequeno glossário. E acredite, ele será bastante útil, pois além do significado das expressões traz também referências de cidades e povoados citados no gibi.

Isso, além de ser um ótimo recurso, revela também a ambição didática da obra. Mas antes de entrar nesse ponto vamos falar um pouco da arte.

Hélcio Rogério construiu o gibi com muita propriedade. Seu traço transita entre a expressividade crua de Eduardo Risso e a clássica beleza de Mozart Couto, criando um Lucas da Feira extremamente real, onde a frieza e crueldade de suas atitudes – assim como seus valores morais – são facilmente identificadas em suas expressões. E isso não é pouca coisa – ainda mais numa obra independente. Mas Hélcio não é nenhum aventureiro, já está ralando nos quadrinhos desde o final dos 90 e sua experiência fez a diferença no bom roteiro do gibi.

Mas Lucas da Feira possui um ponto fraco. E ele reside exatamente em sua ambição didática.

Suas 48 páginas – 30 de história – são um fragmento muito curto da história de uma personagem tão interessante, o que obrigou os autores – ainda que o tenham feito com habilidade – a apressarem ainda mais a curta narrativa devido à necessidade de inclusão de dados básicos sobre a contextualização histórica, além das passagens obrigatórias no nascimento, infância e morte do protagonista.

Com isso, Lucas da Feira perde em profundidade, sobretudo política. E um personagem como esse, numa época em que o Brasil apenas engatinhava como nação, merece ser melhor dimensionado politicamente.

Numa história maior, de 80 a 100 páginas por exemplo, as informações didáticas seriam melhor incorporadas à narrativa e sobraria espaço para os autores explorarem a questão racial naquele Brasil escravocrata. Além disso, haveria a oportunidade de uma deliciosa discussão sobre quais interesses políticos permitiram que um escravo fujão causasse terror às classes dominantes durante duas décadas quase que impunemente.

Mas isso não tira o brilho de um ótimo gibi, sobre uma personagem que ainda tem muito a revelar em papéis empoeirados pelos séculos ou manuscritos mofados em algum baú dos tempos do Império. Que assim como o valente timoneiro do início dessa crônica, pode ter sido considerado um bandido simplesmente pelo fato de que sua luta não era a mesma daqueles que escreveram a história oficial.

Lucas da Feira bem pode ter sido um assassino cruel como um verdadeiro herói popular. E sua história deve ser resgatada. Nesse sentido, o gibi Lucas da Vila da Feira de Sant’Anna se configura como uma ótima e talentosa contribuição.

 

Para adquirir Lucas da Feira encaminhe um email para lucasdafeirahq@gmail.com.

Para saber mais sobre este e outros lançamentos do coletivo Área 71 acesse www.roteirizandohq.wordpress.com.

2 comentários:

  1. Muito Show LiloOooOOoO!
    Quero ler com Urgência esse Lucas!
    Me fez lembrar Besouro Manganga, eles não são contemporaneos? O fato é que tem muito em comum, da personalidade ás contradições e informações perdidas. Outro Fato caro amigo, é de que temos de produzir Quadrinhos, falei de Besouro, mas há 'muitos' mais Lucas e Joãos a serem desenterrados(já que adoras um Zumbi, kkk), da e pela história, eles devem estar gritando de suas covas, aqueles que ás tem, a mesma frase de 'devaneio' de João Candido, na citada peça de Cesar Vieira: ''... - Minha história tem de ser contada agora! Antes que me escape da memória...'' e invoquemos assim como ele " - Castro Alves! - Lima Barreto! Onde estás Lima? Me socorre irmão de Cor!''. também os invoco para socorre-lo Lillo, na criatividade para contar a vedade! Dô

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  2. Fala camarada!!!
    Tá vendo como o que funciona no Olho Vivo pode funcionar em outros cantos também? Lucas da Feira é uma personagem interessantíssima. Vale uma olhada e os quadrinhos dos caras tá muito bacana. E assim vamos, desfraldando a história em busca da verdade!

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