Tinha 12, talvez já 13 anos quando li pela primeira vez Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Confesso, não entendi nada. Não que seja burro. Tenho até alguns neurônios (não muitos) que funcionam muitíssimo bem, obrigado. Mas dá uma olhada nisso:
Vinham tossidas estas palavras, às golfadas, às sílabas, como se fossem migalhas de um pulmão desfeito. Nas órbitas fundas rolavam os olhos lampejantes, que me faziam lembrar a lamparina da madrugada.
Que criança de 12 anos, estudante de escola pública, tem condição de decifrar uma sentença dessas? Eu estava lendo pela primeira vez Machado de Assis quando até então só tinha lido Capitão América e Heróis da TV e é claro que não entendi nada. Eu e toda a sala de aula, com excessão talvez da professora, embora eu tenha dúvidas quanto a isso também. E não vou entrar aqui na qualidade do ensino há 30 anos atrás. Pelo que vejo hoje nos cadernos das minhas sobrinhas, a coisa só piorou de lá para cá.
Já para depois dos 20 anos, quando havia me tornado um devoradorzinho de livros, reli Memórias Póstumas. E é claro que adorei.
Mas apesar de ter gostado muito e ter lido mais uns 05 ou 06 livros do autor depois disso, nunca me tornei um especialista na obra Machadiana. Então fico com a palavra dos estudiosos – que o consideram o escritor maior de nossa Literatura – e com a minha própria opinião: li vários, sem qualquer obrigatoriedade de trabalhos do ginásio ou das provas vestibulares, ou seja, li porque gostei.
E é por isso que aguardava ansiosamente a adaptação em quadrinhos de Memórias Póstumas de Brás Cubas, por Wellington Srbek e J.B.Melado (Desiderata, R$ 39,90 em média).
Srbek, como já disse em outra postagem, é um daqueles caras inclassificáveis. Seu blog – o Mais Quadrinhos – é uma aula sobre HQ. Tem postagens sobre tudo o que é relacionado a quadrinhos, com uma opinião sempre muito bem embasada e coerente. Além de ser um sujeito educadíssimo, que responde todo e qualquer comentário e nunca se desvia das perguntas que lhe são feitas. Para quem, como eu, é amante de quadrinhos e ambiciona entrar no ramo, seu blog não só é uma parada obrigatoria, é uma sala de aula virtual.
Já havia lido do autor o belíssimo Estórias Gerais – em parceria com o mestre Flavio Colin – além de Solar, Muiraquitã e a série institucional Pratique Gentileza. E exatamente por saber de sua qualidade como roteirista que não via a hora do lançamento de Memórias Póstumas.
E não me decepcionei. Como disse, não sou um especialista da obra Machadiana, não sei citar de memória qual obra pertence a qual período do autor e não tenho capacidade técnica para dimensionar ou reconhecer as influências que exerceu sobre a arte brasileira desde então. Mas sei o que é um bom gibi ou uma boa adaptação.
A lógica é simples. Em qualquer adaptação em quadrinhos de uma obra literária – ainda mais um clássico dessa monta – algumas questões básicas devem ser respondidas:
1. Funciona como gibi?
Se não funcionar, pare a leitura na hora. Você não está lendo uma adaptação, está lendo um gibi ruim.
2. Respeita a estrutura da obra original?
Essa também é fácil, até para quem não leu o livro. Se você passou pela primeira pergunta é sinal que leu o gibi. Então vá até uma livraria qualquer – ou mesmo um sebo – e procure a obra original. Dê uma disfarçada, como quem não quer nada e comece a folhear o livro, sem pretensão, passando os olhos pelos parágrafos, se detendo um pouco no final. Se você encontrar nessa rápida folheada pelo menos meia dúzia de situações similares ao gibi que acabou de ler, fique tranquilo, você não foi enganado.
3. O gibi respeita a essência da obra original?
Essa é um pouco mais complicada, pois você precisa ter lido a obra ou, ao menos, alguns outros livros do mesmo autor. E com um agravante: roteirista e desenhista devem trabalhar a história dentro do mesmo clima e estilo do autor original. Do contrário não é uma adaptação, é uma livre adaptação, uma releitura.
E o Memória Póstumas de Brás Cubas de Srbek e J.B Melado responde a todas essas questões com louvor.
O que li no gibi rememora exatamente o que lembrava do livro, lido há mais de 15 anos, e prova que Srbek extraiu exatamente aquilo que era essencial à compreensão da obra original. Não sejamos ingênuos a ponto de achar que 160 capítulos de boa literatura, acondicionados em média em 200 laudas de letras corridas, caberão em 78 páginas desenhadas. Se fosse uma transposição literal, o gibi deveria ter uns 06 volumes de 150 páginas e, convenhamos, seria um saco de se ler.
Mas toda a ironia e hipocrisia da obra original ali estão. Destaque para os amores de Brás Cubas. A cena do ápice do amor entre Cubas e Virgília é tão bela no gibi quanto é no livro. Ao amalucado Quincas Borba e ao seu insano Humanitismo também foram dados o merecido espaço.
A linguagem original foi respeitada, embora com pequenas adaptações – sempre necessárias nesse tipo de trabalho – afinal, é uma história em quadrinhos. Lembram-se da primeira questão? Pois é, tem que funcionar como um gibi, que é uma mídia muito mais rápida e direta do que o texto escrito.
Por fim, o estilo de J.B.Melado (confira ao lado) capta muito bem o clima reflexivo da obra original. Não dá para imaginar Memórias Póstumas como um mangá ou ainda no estilo anabolizado dos “super” estadunidenses. Sua arte é correta, calcada num estilo mais expressivo, com uma paleta de cores belíssima. O que torna o gibi atraente para crianças e para adultos.
O grave defeito de Memórias Póstumas: chegou com 30 anos de atraso. Se eu tivesse lido o gibi antes do livro, talvez minha compreensão tivesse sido muito melhor e não teria demorado mais de uma década para a releitura. E minha 6ª série teria sido um pouco mais tranquila…
Esse é um defeito que nossos educadores, se despidos de seus preconceitos, poderão corrigir parcialmente daqui em diante. Pois a quantidade de adaptações de qualidade que existem em nosso mercado já justificam um olhar mais atento para as inúmeras possibilidades de utilização dos quadrinhos em salas de aulas.
Memórias Póstumas é mais uma prova disso, além de ser também um baita dum gibi.
Sensacional, meu amigo.
ResponderExcluirassim que pintar uma grana, vou comprar.
em tempo: adoro o projeto editorial que a desiderata está dando a essas adaptações... As capas são sensacionais...
Adoro Machado... mais para mim, Jorge Amado foi o maior... e em adaptação aos quadrinhos, ninguém ainda ganhou do spacca com jubiabá de Jorge Amado...
Quem sabe Srbek não muda essa minha opinião.
Parabéns pela postagem, como sempre excelente!
Abração,
Lucas,
ResponderExcluirAcho que esse lance que você tem com quadrinhos educativos vai ser muito bem aproveitado com o Memórias Póstumas. Também curto muito o Jubiabá do Spacca e considero que essa onda de adaptações é muito bem vinda. Temos que apoiar esse mercado porque pode ser muito útil para a consolidação de um mercado nacional. O cara vai ler a adaptação na escola com un 11, 12 anos. Pode ser que depois ele vire um leitor fanático de Literatura - o que é ótimo - e também pode ser que ele depois, quando ver um outro trabalho do Srbek, do Spacca, do Fido Nesti, resolva comprar porque já conhece os caras, sabe que são brasileiros e fazem um trabalho bacana. E aí seria ótimo duas vezes.
Grande Lillo. Seu blog é uma trincheira solitária nesse panorama cultural. Continue atirando, e longa vida ao Gibi Rasgado!
ResponderExcluirUm beijo no seu coração!
Gil Teixeira
Artista
Sampa
e
Viva o povo Brasileiro!
Lillo, desculpe duas postagens seguidas, mas que eu li no Blog do Miro sobre um gibi que estão lançando para explicar a banda larga do governo Lula, se interessar aí vai o atalho:
ResponderExcluirhttp://altamiroborges.blogspot.com/
abraços
Gil Teixeira
Artista
Grande Gil!!!
ResponderExcluirSaudades de você, seu tranqueira.
Poxa meu velho..."trincheira solitária"?
Pode ter certeza que guardarei esse elogio pra vida toda.
E vamos continuar lutando camarada!
Super beijo.
Lillo, sensacional seu blog, suas postagens são demais, adoro!
ResponderExcluirTambém tive dificuldades com esse livro na época da escola, rs. Demais saber da existência dessa adaptação, vou correndo comprar pra eu ler. =)
A idéia da utilização de adaptações em quadrinhos na sala de aula é muito válida, excelente, acredito que seria mesmo uma ótima forma para nossas crianças e adolescentes compreenderem melhor e até se interessar mais pela leitura e pelo mundo mágico da literatura. Dois mundos mágicos unidos por um aprendizado melhor, que belo!
PS. É seus "poucos neurônios" funcionam perfeitamente bem, muito inteligente, bem escrita e gostosa de ler suas postagens! Parabéns. =)
Beijos Pri
Oi Pri!
ResponderExcluirMas para isso nossos educadores devem começar a trabalhar os quadrinhos de forma séria, Pri. Enquanto eles insistirem que quedrinhos não é arte e não serve para educação, apenas para entretenimento, vamos continuar oferecendo livros com uma linguagem pouco usual para crianças que nunca leram qualquer outro livro na vida. Mas pouco a pouco vamos mudando esse panorama.
E obrigado pelos elogios! Um super beijo.
Também desfrutei deste álbum, inclusive seu desenho e formato, creio que os autores souberam escolher os elementos principais de cada capítulo. O Velho diálogo de Eva e Adão é um dos capítulos onde se desfruta da potência imaginal da arte dos quadrinhos.
ResponderExcluirCreio que eu já conhecia este blog... Um bom blog! Há tempo li um post sobre seu regresso ao 'clube' de leitores de gibis depois de ter doado sua coleção.
Olá Ismael!
ResponderExcluirRealmente é um ótimo gibi. Uso esse termo porque nunca aprendi a chamar gibi de novela gráfica, álbum ou sequer HQ. Concordo com você, o Srbek conseguiu fazer uma ótima adaptação de um livro dificílissimo, dada sua narrativa peculiar.
E que bom que você já havia aparecido antes. O post que você fala é do dia em que perdi minha batalha - insana, diga-se - contra o Asterix. Foi comprar o gibi e voltar a colecionar...
Continue passando por aqui de vez em quando.
Um grande abraço.