domingo, 20 de junho de 2010

O dia em que perdi a batalha para os Gauleses

Num sábado de 1992, eu estava no sofá quando a campainhatocou. Os dois rapazes fizeram questão de se identificar. Eu estava tranqüilo.

Dias antes o diálogo insólito:
- Sim, eu gostaria de doar os meus gibis.
- Tudo bem, o senhor pode trazer aqui, vou passar oendereço...
- Moça, a senhora não está entendendo. Eu não tenho carro.
- Infelizmente senhor, não temos condições de ir buscar emcasa.
- Moça, é que são muitos.

A voz do outro lado parou. Quando voltou, não escondia umadiscreta excitação.
- Quantos gibis exatamente, senhor?
- Mil duzentos e oitenta e dois.

Quando os rapazes colocaram a última das seis caixas naKombi branca eu sabia que havia acabado. Não esperei darem partida, entrei emcasa sem olhar para trás.

Foram 11 anos de coleção – de 1979 a 1990 – e que hojeengrossam as fileiras da Gibiteca Henfil.
Fuçando tudo o que foi sebo e banca de usados – do Centroaté Guaianases, no extremo leste da cidade – havia conseguido as coleçõescompletas de Superaventuras Marvel, Homem Aranha, Incrível Hulk, Heróis da TV,A Espada Selvagem de Conan, os clássicos Batman e Super Homem, dezenas deminisséries completas e uma série de outros títulos de vida curta. Praticamentetudo o que a Editora Abril havia publicado da Marvel ou da DC entre os anos de1977 e 1990.
E não terminava nos cruzados de capa: dezenas de Calafrio,Mestres do Terror e Kripta, muita coisa da Ebal e da RGE, vários Fantasma eMandrake e pelo menos uma dúzia de Tex cuja numeração ainda hoje me trazarrepios só de imaginar o preço que valem.

Passadas quase duas décadas nunca me arrependi daquela decisão.Naquela época, havia decretado o fim dos quadrinhos na minha vida.

Mas esse negócio de gibi – já gritavam discípulos do Senador McCarthy há mais de meio século – tem participação com o tinhoso.
Uns três anos após aquele fatídico sábado, fuçando num seboatrás de algum livro do Garcia Marques, trombei com um gibi do Asterix.
Asterix foi uma das minhas paixões na adolescência e uma daspoucas coisas que eu lia e que não possuía um S, um morcego ou uma aranha nopeito.
E aquele eu não havia lido, então comprei.
Juro que era só para ter alguma coisa pra ler no metrô.

Eu sei que tem gente que diz “é só dessa vez e depois nuncamais”, “estou limpo, parei de usar, palavra”, “foi só pra tirar uma, agora pareimesmo”.
Não foi o meu caso. Eu nunca deveria ter comprado aqueleAsterix.

Escondi o fato da família por mais uns dez anos. De vez emquando minha mãe me via com um gibi na mão, mas fazia vistas grossas, achavainofensivo. Ledo engano.

Aqueles anos de leitura solitária, dando os gibis proprimeiro moleque que eu encontrava na rua apenas para não aparecer com provasem casa, me convenceram de duas coisas:

1. Eu nunca deixaria de ler gibis na minha vida. 
2. Eu devia ter guardado pelo menos umas duas centenas de exemplares daquela coleção...

    Já casado, morando no pequeno apartamento aqui de Itaquera,decidi que era hora de assumir a minha real condição de nerd. Ou melhor,decidiram por mim.

    Minha esposa – discreta como sempre, certeira como nunca –chegou um dia e me disse:
    - Por que você não pára de tentar me esconder que voltou acolecionar gibis?

    O medo gelou minha espinha. Fui burro e descuidado, elahavia descoberto. Parecendo um adolescente pego fazendo bobagem no banheiro,perguntei:

    - Você está brava?
    - Não. Só acho engraçado você vir pro quarto com um gibidentro da blusa e escondê-lo no meio dos livros. Já está começando a fazervolume. Achou que ia conseguir esconder isso de mim até quando?

    Senhores, eu não sei sobre vocês, mas naquele dia eu era ohomem mais feliz do mundo. Havia conseguido algo que todos invejam: salvoconduto para comprar meus gibis.
    A única pessoa com kriptonita o suficiente para me deterhavia dito que estava tudo bem. Aquilo foi a minha poção mágica do druidaPanoramix. Nada mais me impediria.

    Outro dia ouvi um comentário maldoso de uma mulher no metrô.Ela disse a amiga, num mal disfarçado cochicho, que era uma vergonha ummarmanjo como eu ler gibi, parecia criança.

    Eu pensei em lhe explicar que eu não sou apenas um marmanjoe que provavelmente seria mais velho do que ela. Pensei em esfregar-lhe na cara"Shazam", do Álvaro de Moya (que por acaso estava dentro da minha mochila naqueledia). Pensei em lhe dizer que existem gibis para crianças, para adolescentes e paramarmanjos sem vergonha na cara como eu. Pensei em lhe falar como alguns gibisrivalizam com as melhores obras literárias da história.

    Mas acabei soltando uma sonora gargalhada. As duas meolharam espantadas.
    Sem pestanejar, atirei à queima roupa:

    - O Obelix... Acabou de estapear mais um romano.

    6 comentários:

    1. Hehehe...

      Então, gostei muitos anos das histórias dos Titãs, mas a falta de persistência nunca deixou eu colecionar...

      Claro que o Asterix fez parte de minha vida. Lia TUDO o que encontrava na biblioteca do Sesi e devorava as seções de livros infanto-juvenis.

      Mas, guardo aínda 4 revistas do Hulk encartado a história do STAR WARS...

      Um abraço.

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    2. Oi Marcio,

      Formatinho da Abril, né?
      Eu lembro dessas, foi lá pelo nº 20 que começou a sair. No Hulk 13 até carta minha foi publicada, eu era um pivete de uns 12 ou 13 anos.
      Acho que foi no Capitão América que na mesma época saiu Indiana Jones. Outra piração. Bons tempos camarada.

      E Asterix foi mesmo a minha desgraça. Tô até agora tentando lembrar qual foi o álbum que eu comprei naquele dia, acho que foi A Cizania. Mas não tenho certeza. Sei que depois dele voltei a comprar...

      Grande abraço!

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    3. Sensacional meu amigo.

      Adorei!

      Parabéns!

      Abraços,

      Lucas

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    4. É uma dessas coisas que acontecem na vida da gente Lucas...

      Grande abraço!

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    5. Eh, rapaz, quadrinho é assim: uma recaída e já era... Hehe!
      Ótimo texto, Lillo! Bacana pelo relato pessoal e pelo humor. (É muito bom termos mais pessoas que escrevem bem escrevendo sobre quadrinhos.)
      Mas veja que o texto poderia ter tido outro título, já que sua esposa, sábia e sensivelmente, foi a grande heroína desta história.
      Grande abraço!

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    6. Não é que você tem razão Srbek! Se houve algum gaulês nessa história toda foi ela. Irredutível, me protegeu das hordas romanas. E a poção mágica dela meu amigo, me dá força sobre humana!
      Valeu pela visita, Wellington. Pretendo manter a regularidade e ir escrevendo sobre quadrinhos - novos e velhos - de uma forma bem humorada.

      Grande abraço!

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