quarta-feira, 2 de outubro de 2013

O velho Dema e o Capitão Nemo

CAPA_NEMO

Por que diabos se escreve um gibi?

Bem... Cada um tem sua verdade.

Já ouvi opiniões das mais diversas, das sublimes e artísticas até aquelas mais escrotas

CA07Eu só posso responder por mim: escrevo por causa de um danado de um Capitão América nº 7, publicado pela Editora Abril em 1979.

Aquilo desgraçou irremediavelmente minha vida.

Trepado no pé de ameixa da minha bisavó, tinha uma visão privilegiada de toda rua. Naquela tarde de meus sete anos, vi meu pai despontar na esquina com sua indefectível pasta preta.

Naquele tempo eu voava como o vento...

Ainda hoje lembro-me daquele abraço e de seu cheiro, uma mistura de colônia barata e Óleo Singer, fruto de sua profissão como técnico de máquinas de escrever na Olivetti.

E nunca me esquecerei do momento em que ele, ali mesmo, no meio da rua, abriu sua pasta e me deu aquela edição do Capitão América.

Naquela tarde sentamos no chão do quintal e lemos juntos nossos gibis.

Ele foi de Tex, o seu preferido, enquanto eu acabava de descobrir um maravilhoso mundo repleto de seres super poderosos.

Naquela época eu jamais teria tal discernimento, mas hoje entendo que aquela tarde foi um daqueles momentos que definem sua vida para sempre.

Mas aquilo foi muito antes da doença que consumiria sua inteligência ímpar e o levaria à morte 15 anos depois.
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Quando o editor Wellington Srbek me convidou para escrever um dos volumes de As Aventuras do Capitão Nemo, aceitei na hora.

Seria meu terceiro trabalho pela Editora Nemo, mas ao contrário dos dois anteriores – ambos adaptações de peças Shakespeareanas – este seria uma história original baseada no universo criado por Julio Verne em 20.000 Léguas Submarinas.

O desenhista seria novamente o Will (de quem sou fã incondicional), que já havia adaptado a obra original ao lado do roteirista João Marcos e produzido o primeiro volume da coleção (As Aventuras do Capitão Nemo: Profundezas) junto com o Daniel Esteves.

Definitivamente, recusar não era uma opção.

O que não queria dizer que seria fácil…
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Um dos maiores problemas em se produzir quadrinhos no Brasil – e acredito que em qualquer outro país que não fale japonês ou francês – é a concorrência desleal com a indústria norte americana.

Como alguém em sã consciência entra numa briga dessas?

Ainda mais fazendo uma história baseada na obra de um cara que morreu há mais de cem anos…

E daí eu olho para meu sobrinho e o vejo escolhendo uma action figure do Ben 10, o tema de seu aniversário é o filme dos Vingadores e seu amiguinho aparece na festa vestido de Homem Aranha

Bilhões de dólares de investimento fazem um moleque de nove anos (que não faz a menor idéia de quem é Marvel ou DC e muito menos que elas pertencem a Disney e a Warner) acreditar que aquilo é mágico.

E não discordo. Trepado naquele pé de ameixa li centenas de gibis de super heróis. É um mundo mágico e fascinante.

E está em todo lugar: nas mochilas, nos brinquedos, nas roupas, nos sapatos, nos doces, na TV, no cinema, nos desenhos…

E até nos gibis.

Como competir com isso?

Simples: não há competição.

Nessa história toda alguém simplesmente bateu com a cabeça na parede. Ou foi o editor ou foi o roteirista junto com o desenhista.

Ou os três.
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Não estamos simplesmente falando de um escritor qualquer. Estamos falando de Julio Verne, o cara que praticamente inventou a Ficção Científica!

O cinema ainda engatinhava quando Méliès encantou o mundo com seu Le Voyage dans la Lune. Um ilusionista produzia no alvorecer do séc. XX, com uma série de trucagens e efeitos até então impensáveis, um dos filmes mais emblemáticos da história do cinema. E adivinhem na obra de quem ele se inspirou?
 
meliesVerne lançou em seus livros as bases do entretenimento moderno. Do já citado Méliès a Spielberg, de Walt Disney (que também o adaptou para o cinema) a George Lucas e seu icônico Guerra nas Estrelas, ninguém nos últimos 100 anos escapou da influência do escritor francês

E aqueles que não beberam diretamente da fonte, o fizeram daqueles que beberam.

De uma maneira ou de outra, tudo o que tem monstros, cientistas malucos, astronautas e alienígenas passa de alguma forma pela obra de Verne.

E daí voltamos para aquela pergunta: dá pra competir com uma indústria onde cada produto possui bilhões de dólares de investimento, seja um gibi ou o novo blockbuster de verão? Onde tudo é pensado para vender aos milhares, milhões de unidades?

Não dá. Esquece!

Não veremos o Capitão Nemo estampado nas lancheiras ou virando bonequinho da Gulliver.

Mas dá pra fazer um baita gibi… 
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Em As Aventuras do Capitão Nemo: O Navio Fantasma! tudo o que eu quis foi fazer um gibi com cara de gibi.

Uma história como aquelas boas aventuras do Scooby Doo, onde um mistério fantasmagórico te leva a acreditar que os mocinhos vão realmente se ferrar até que uma pista, que aparentemente não revelava nada, salva o dia de nossos heróis.

Um gibi com gosto de infância, que seja capaz de fazer o Vinícius – aquele carinha simpático de nove anos que se amarra no Ben 10 e escolhe o pedaço do bolo que tem estampado a cabeça do Hulk – se desligar de um “universo” planejado minuciosamente para agarrá-lo pelos próximos 50 anos e entrar em outro mundo: um lugar mágico que só depende da cabeça dele pra existir.

Quis fazer um gibi onde os pais, talvez escondidos dos filhos e de suas esposas, lembrem-se do que é jogar uma tampinha de garrafa na correnteza de uma sarjeta num dia chuvoso e acompanhá-la durante toda a rua, até que o inevitável bueiro a engula. Uma história que possa, mesmo que por um breve instante, lembrar ao adulto que um dia ele foi o Capitão de um navio de tampinha de guaraná numa sarjeta.

Pretensão?

Ora! Com mil diabos!

Depois daquelas bordoadas que o Hulk deu no Loki, a única munição que me restou foi tentar escrever um bom gibi!

E por que mesmo se escreve um gibi?

Bem… Cada um tem a sua verdade.

A minha ainda está trepada naquele pé de ameixa, na esperança que meu pai, o velho Dema, vire a esquina e tenha naquela misteriosa maleta preta algo que mudará irremediavelmente a minha vida.
pai

19 comentários:

  1. O tipo de texto que já deixou saudades... E como é bom ler algo desse nível novamente...

    Você fez um baita gibi... Um gibi com gosto, com cara, com cheiro de gibi, e essa aventura original do Capitão Nemo, honra o clássico que foi escrito por Verne.

    Parabéns!

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    1. Valeu Lucas! Foi muito divertido fazer e a arte do Will captou com perfeição as pirações que tavam na minha cabeça. Espero que os leitores gostem do resultado!

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  2. Caaaaara... Nem sei o que dizer.
    Como sempre você diz o que precisa ser dito com sensibilidade ímpar.
    Muito obriagdo!

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    1. Valeu Serjão!
      Obrigado pelo carinho de sempre, meu amigo!

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  3. Grande Lillo, quanto mais leio seus textos, mais te percebo como um “alquimista” daqueles que de forma incomum misturam emoção, lembranças, conhecimentos variados (o texto acima está riquíssimo de referências – se algum sábio professor souber aproveitá-lo encontrará tema para muitas aulas exploratórias...) e desperta dentro da gente uma baita vontade de LER!!!
    Por uma grata “sincronicidência” o meu exemplar desse gibi estava me aguardando aqui ontem e fiquei tão feliz de chegar e poder tocá-lo, apreciar suas cores e traços...
    Resisti bravamente a tentação de devorá-lo pois percebi que ele merece um tempo só pra isso.
    Um “tempo dedicado” onde mergulharei nessa aventura com muito gosto.
    Agora, depois de ler seu texto, emergiu a vontade de parar tudo que estou fazendo e criar essa brecha temporal. Suas palavras reverberaram fundo no coração e me apresentaram a este universo dos gibis pelo ponto de vista de um moleque travesso (no bom sentido) de corpo e mente ágeis (que precisam ir além das dimensões físicas da realidade conhecida o dia a dia).
    Mesmo tendo crescido como uma menina que sempre gostou mais de “brincadeiras de meninos” – muito mais empolgantes e divertidas - até este momento ainda não tinha olhado para um gibi desta forma, e agora poderei usar estas lentes ao ler e curtir essa obra rara...
    Desde a infância, minha interação maior é com os livros e filmes, muitos dos quais me teletransportam para outros universos (alguns muito mágicos).
    Minhas excursões pelo “universo gibístico”são menos frequentes, embora conviva há 27 anos com um homem que não só ama os gibis, como tem dedicado boa parte de sua vida e talento a fortalecer a presença e difusão da arte das HQs no Brasil.
    E prá minha grata alegria foi ele (Will) que desenhou e você, outro apaixonado dessa Arte – que escreveu esta história que já já vou ler!!!
    Me senti duplamente presenteada por essa “sincronicidência” que me permitirá embarcar nessa leitura com um novo olhar e pelo fato de poder convidar a ambos para comemorarmos mais esta aventura que ganha vida aqui no Brasil via a expressão dos talentos que vocês há tanto tempo estão cultivando e desenvolvendo...
    Achei ótima a sua percepção de que não é preciso concorrer.
    Melhor somar, pois assim, leitores em todo o Planeta podem se beneficiar...
    Da mesma forma que o Capitão América despertou algo especial dentro de você,
    o Capitão Nemo, sob a imaginação astuta de dois brasileiros inspirados na obra de um francês, pode percorrer muitas águas e aportar em outros continentes, despertando crianças e adultos daqui e de outras terras para esse rico universo da leitura que nos leva muito além, do que qualquer tipo de concorrência poderia nos levar... Melhor que concorrer, é cooperar para que este universo cresça, se expanda e conquiste mais leitores...
    PARABÉNS para você, Will e toda a equipe da Nemo por darem vida a mais esta obra magnífica!

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  4. Mônica, querida amiga, seu comentário me enche de felicidade. Ele merecia uma postagem só dele.
    Você entendeu exatamente tudo o que eu tentei dizer.
    Às vezes é difícil de explicar para a maior parte das pessoas, mas durante uma boa parte da minha infância, quando o alcoolismo de meu pai se tornou crônico, os gibis foram meu porto seguro.
    Aquela tarde no final de 79, começo dos 80, mudou de verdade a minha vida, me arrastando para as artes, que me jogaram no teatro e que décadas depois me trouxe novamente para os gibis.
    Mas sobretudo, foi aquele gibi que desencadeou um processo que conservou intacta a criança em mim. E se hoje eu escrevo é graças a isso.
    E é minha obrigação, enquanto artista, me esforçar ao máximo para retribuir à vida, aquilo que a fantasia me deu.
    Em relação ao gibi, espero que você se divirta lendo tanto como eu me diverti escrevendo.
    Em relação ao Will... bem, o que eu posso dizer sobre esse cara que você já não saiba?
    Em O Navio Fantasma!, cada quadro, cada situação, cada diálogo foram pensados para o traço único dele. O Will é um gênio gráfico e um dos melhores em atividade no Brasil.
    Modestamente, espero ter criado um roteiro à altura do talento desse menino.
    Um grande beijo e muito obrigado pelas palavras e pelo carinho.
    Foi emocionante ler seu depoimento.

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  5. O que eu posso dizer de tudo isso? Só posso agradecer a Mônica que me colocou nos trilhos, que sempre me apoiou e, principalmente, acreditou que eu podia fazer isso. Quando eu duvidei muito, ela só tinha certezas, quando eu quis desistir ela me "puxou a orelha". Por isso, cada trabalho que eu faço, mesmo aqueles que ela nem curte tanto, rerere..., os faço em honra á firme crença dela na minha capacidade. Agradecer sempre será pouco, então o que eu posso fazer é me dedicar a fazer sempre o meu melhor em cada página. Quanto ao Lillo... quem acompanha o Gibi Rasgado e todos os projetos onde, incansavelmente, ele está presente, sabe muito bem do seu talento excepcional, extravagante, envolvente e genial. Já disse repetidas vezes por aí que sou um desenhista que gosta de trabalhar em parceria, grande parte da minha pequena obra em quadrinhos está diretamente ligada aos maravilhosos roteiristas/cúmplices, Lillo Parra é um destes, trabalhar esse Navio Fantasma com ele foi especial porque ambos temos referências em comum o que tornou a feitura deste gibi mas fluída, cada palavra, cena e fala do seu roteiro me inspirava, animava e motivava. Só espero que os leitores curtam ler esse gibi tanto quando eu curti fazer. Só posso agradecer também á Editora Nemo, nas figuras do editor Wellington Srbek e o Arnaud Vin que toparam deixar nas minhas mãos um personagem e um universo que tem sua gênese pelas mãos do brilhante e visionário Julio Verne.
    Agradeço a todos os que leram os dois anteriores e aos que já estão interessados neste, valeu!!!
    Mobilis in Mobili.

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  6. Lillo,

    Seu comentário é exatamente o que sinto. A gente vive aquele mundo todo de quadrinhos enlatados, mas quando cresce sente muita vontade de produzir suas próprias HQs. A questão é que o nosso público potencial somos nós mesmos.

    Meus motivos são praticamente iguais aos seus, mudam apenas os detalhes.

    Sinto muita alegria de compartilhar o prazer de escrever uma HQ com um colega tão bacana, tão inteligente e acima de tudo tão esforçado. Muita gente não gosta desse termo,mas para mim significa: insistir tanto em algo que acaba ficando bom naquilo. E você é bom. Bom pra caralho!

    Quero devorar essa HQ, como eu fazia com os gibis que comprava no sebo quando era moleque. Deitado no sofá com a TV ligada nos desenhos animados e com todas as coisas que gosto junto comigo (segredo, faço isso até hoje, eu adoro ficar perto de alguns objetos especiais pra mim).

    Deixa eu parar de chorare aqui!

    Abração!

    Raphael Fernandes

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    1. Rapha,
      Muito obrigado pelas palavras, meu irmão.

      Fazer quadrinhos no Brasil, com todo esse lance midiático envolvendo a indústria, as vezes parece loucura.

      Mas quem disse que não existem loucos dispostos a encarar a tarefa?

      E você, meu caro, é um dos loucos mais talentosos que conheço.
      E vamos seguindo, com fé e perseverança, nos nossos gibis. É uma honra imensa trabalhar ao teu lado.

      Um grande abraço!

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  7. Lillo... grande texto!
    ;)
    Eu tive essa sensação aos 7 anos quando o meu pai chegou a casa vindo da capital com um revista Tintim. Continha histórias "a seguir" de todos os principais títulos europeus tipo o Tintim, Asterix, Blake & Mortimer, Bruno Brazil, etc.. etc..
    :)

    Abraço

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    1. Muito obrigado Nuno!

      Esse negócio de quadrinhos não tem jeito, rapaz... Nos pega ainda crianças, nos alicia e nos vicia pro resto da vida!

      E na minha modesta opinião, ainda bem que nos viciamos!

      Um grande abraço, meu caro.

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    2. Desconhecia o teu blogue, ou nunca tinha reparado nele na confusão que é a internet!
      :)
      Vou linkar!

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    3. Linkar no Leituras de BD, claro... ;)

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    4. Valeu Nuno! E pra quem ainda não conhece, uma ótima oportunidade para ver o que acontece no mundo dos quadrinhos portugueses, o blog Leituras de BD: http://bongop-leituras-bd.blogspot.pt/

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  8. Que texto incrível... merece ser compartilhado com certeza. Fiquei sem palavras aqui... ainda estou descobrindo essas HQs, graças ao Wellington Srbek e seu trabalho brilhante como roteirista. Certo que vou ter na minha estante e na minha memória a história do Capitão Nemo, feita por esse "menino" que carrega uma lembrança tão bonita consigo.

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    1. Valeu Fernanda! Muito obrigado pelas carinhosas palavras. E seja bem vinda ao mundo das HQ Nacionais! O Srbek é um roteirista brilhante e está fazendo um trabalho excepcional à frente da Nemo! Espero que curta.

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