sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Sangue no chão e um cheiro podre no ar

Honra e vingança.

Boa parte da história moderna só existiu graças a força da honra e ao poder da vingança.

O restante foi construído sobre os escombros de seus contrários.

E as duas partes foram amarradas com a promessa divina do idílico paraíso ou da danação eterna.

E isso resume toda a história ocidental.

E também define nações.

A mais proeminente de nossa era – a estadunidense – é pródiga em exemplos de valor, ou ao menos soube vendê-los de maneira atraente às demais nações.

Não entrarei aqui na já repisada discussão sobre a imposição de ícones como forma de dominação cultural. Gente de muito maior valor já fez isso de forma bem mais competente¹. Não que discorde de uma boa parte da opinião deles ou a ignore, diga-se.

Mas quero falar de um daqueles ícones norte americanos que habitam a imaginação coletiva mundo afora. Um lugar em que qualquer guri de sete anos sabe que os fracos morrem cedo e só os fortes sobrevivem: o velho oeste americano.

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Todos já assistimos a um bom filme de faroeste. A maior parte tem como referência os excelentes e deliciosos Bang Bang a Italiana imortalizados pela TV Record nos anos 80, onde O Dólar Furado (1965) seja talvez o maior expoente. Mas também existem verdadeiras obras primas do cinema. Filmes com tal requinte e sofisticação – e ainda assim tão intensos – que nada ficam devendo a clássicos como O Poderoso Chefão ou Laranja Mecânica (apenas para citar dois exemplos de gêneros bastante distintos). Estou falando de filmes como Era Uma Vez no Oeste, Meu Ódio Será sua Herança ou Os Imperdoáveis.

São filmes onde honra e vingança são o ponto central do roteiro e ajudaram a consolidar a imagem do velho oeste em todo o mundo, influenciando – além do próprio cinema – a literatura, a música, a moda e, claro, os quadrinhos.

Do popular italiano Tex ao seu sofisticado conterrâneo Ken Parker, passando pelas milhares de histórias norte americanas das décadas de 40 e 50 e até pelo brasileiríssimo Chet, não faltam bons exemplos de quadrinhos sobre aquela terra de bravos.

Mas de vez em quando aparece um daqueles gibis que te fazem prender a respiração e suar frio, à espera de quem sacará primeiro a sua Colt

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Oeste Vermelho não é um bom gibi.

E antes que vocês estranhem, já que só resenho o que gosto, explico: Oeste Vermelho não é um bom gibi porque não é simplesmente um gibi.

Oeste Vermelho, dos gêmeos Magno e Marcelo Costa (Devir Livraria – 88 páginas – R$ 34,50 ) é um trago de uísque batizado, a anágua à mostra de uma prostituta barata, o olhar assustado de um repórter recém chegado de San Francisco ou Chicago…

Oeste Vermelho tem cheiro de pólvora.

Fazer um gibi de Faroeste, um gênero tão explorado e, como já disse, tão arraigado em nosso imaginário não é tarefa fácil.

E os gêmeos sabiam disso com certeza…

Do contrário, como explicar que os protagonistas de Oeste Vermelho sejam basicamente gatos e ratos?

Uma sacada assim – ainda que não faltem precedentes nos quadrinhos (e entre eles o magnífico Maus) – funciona como um farol numa tempestade em alto mar.

O que não adiantaria de absolutamente nada se Oeste Vermelho não fosse uma baita duma história.

Vamos aos fatos: ratos são nojentos, gatos são peludinhos e macios; ratos trazem a peste, gatos trazem seus corpos pra gente ficar passando a mão; e gatos caçam ratos, não nos esqueçamos…

Mas no mundo dos Cartoons a situação é inversa. Talvez sejam aqueles lindos e pedintes olhos de contas dos roedores, imbatíveis se comparados aos dissimulados olhos dos gatos. Talvez seja a incontestável inferioridade física dos ratos que nos desperta o velho sentimento de torcer pelo mais fraco.

Ou talvez a culpa seja mesmo do Mickey…

O fato é que nos afeiçoamos aos ratos, tanto nos desenhos animados quanto nos quadrinhos.

O que não quer dizer necessariamente que Oeste Vermelho seja uma história bonitinha com ratinhos e gatinhos

Aliás, Oeste Vermelho pode ser tudo, menos uma “história bonitinha”…

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Não espere novidades. Se você é realmente um fã de faroeste, com certeza já viu a história antes: um fazendeiro pacato, que tem uma antiga rusga com o chefão da cidade, é publicamente desacreditado quando tenta alertar a todos sobre o risco iminente de uma invasão de bandoleiros assassinos.

O resto da história será a desgraça, redenção e vingança de nosso herói, que não descansará enquanto o último inimigo não estiver com uma bala na cabeça.

Absolutamente nada de novo.

Mas o jeito como esses dois caras contam a história…

Primeiro: sobram referências.

E aqui estou falando de referências de verdade, não de plágio ou clichês. Da vestimenta da personagem principal a aparência dos estabelecimentos, o que não faltam são homenagens à extensa filmografia do gênero.

Mas a referência mais genial é exatamente a mais sutil. Os irmãos Costa estruturaram Oeste Vermelho de uma forma inusitada. Sai a ação vertiginosa que permeia boa parte da produção de quadrinhos atual e entram longos e lentos planos, apagam-se as explosões e a pirotecnia habitual e entram os detalhes, o explicito cede lugar ao implícito, criando uma atmosfera desoladora.

Não reconhece o clima? Então procure pelos filmes Por Um Punhado de Dólares, Três Homens em Conflito ou Era uma vez no Oeste, e conheça um dos mais geniais diretores de todos os tempos: Sergio Leone (1929 – 1969), o autor de alguns dos melhores filmes do gênero em todos os tempos.

Uma justa homenagem que confere ao gibi um ritmo narrativo excepcional.

Segundo: roteiro e arte não possuem concessões.

Esqueçam os meninos, Oeste Vermelho é um gibi pra homens – ou pra mulheres, vocês entenderam…

Nada de cowboy de sorriso de diamante, nada de escapes cômicos, nada – absolutamente nada – de concessões. Se é pra ser mau, a crueldade é verdadeira. Se é pra se vingar, não tem perdão.

E se não bastasse tudo isso, a impressão que se tem ao terminar a leitura de Oeste Vermelho é a de estarmos diante dum gibi sério, onde o carinho e esmero com que foi feito simplesmente são visíveis em cada quadro, em cada diálogo.

Quase se dá pra ouvir uma gaita tocando no fundo…

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¹ Super Homem e seus Amigos do Peito – Ariel Dorfman e Manuel Jofre – Editora Paz e Terra (mas facilmente encontrado nos sebos também numa edição do Círculo do Livro).

11 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Tchê.
    A prova de que essa foi uma baita de uma resenha, é que eu, fãzaço de westerns, agora, após o término da leitura da postagem, faço questão de ler essa história da qual jamais havia ouvido falar.
    Parabéns.
    Se a obra for metade do que tu afirma no texto, já é clássico.

    Vim no blog só de visita, mas já tô seguindo.

    http://ibaldomarcel.blogspot.com/

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Opa Marcel! Valeu por prestigiar o blog. Meu velho, tá mais para minha resenha não fazer jus a metade do que o gibi é! Tomara que você curta. Um grande abraço e apareça sempre que quiser!

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  5. Sensacional... fantástico! Eu já queria o gibi antes... Agora eu quero e MUITO esse gibi!

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  6. Ahhh e me lembrou Fivel, o Ratinho no Velho Oeste!!

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  7. Lillo;

    Suas resenhas sempre oscilam entre o excelente e o extraordinário, mas algumas, como esta, são simplesmente fantásticas! Oeste Vermelho tá aqui e vou ler ainda este final de semana!

    Grande abraço!

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  8. Lucas, mas o Fievel - apesar de excelente - é muito fofinho. Oeste Vermelho é uma porrada. Não perca a chance de ler. Aproveita que o Serjão tem e já fila sorrateiramente o exemplar dele!

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  9. Serjão, você é que é muito generoso em seus elogios. Obrigado. Mas esse gibi está sensacional mesmo. Leia e nos conte depois.
    Grande abraço (e empresta seu exemplar pro Lucas!)

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  10. Lillo;

    Li Oeste Vermelho, duas vezes. É tudo que você disse e mais - as referências estão lá, algumas desencavadas dos meus tempos das sessões de Ban Bang a Italiana. Bom demaaaaiiissss!

    Quanto a emprestar Oeste Vermelho ao Lucas, eu posso até emprestar - só não tenho certeza de que ele vai devolver. Eu não sei se devolveria... :-)

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