Eu vos digo: o problema do escrete não é mais de futebol, nem de técnica, nem de tática. Absolutamente. É um problema de fé em si mesmo. O brasileiro precisa se convencer de que não é um vira-latas e que tem futebol para dar e vender, lá na Suécia. Uma vez que se convença disso, ponham-no para correr em campo e ele precisará de dez para segurar, como o chinês da anedota. Insisto: para o escrete, ser ou não ser vira-latas, eis a questão.
Nelson Rodigues – 31/05/1958.
Concordo. Não é usual começar uma crônica sobre quadrinhos com uma crônica sobre futebol. Ainda mais citando um gênio como Nelson Rodrigues, mas é nisso que dá quando um ator se mete a besta em escrever sobre quadrinhos.
Acabei de ler Mondo Urbano, do trio gaúcho Rafael Albuquerque, Eduardo Medeiros e Mateus Santolouco.
Já sei, estou atrasado…
Na verdade, bastante atrasado.
Mondo Urbano vem sendo publicada no circuito independente desde 2008. Primeiro nas edições Power Trio, Overdose, Cabaret e Encore, e recentemente compiladas numa única edição pela Devir, após terem sido publicadas lá nos States…
Explicação razoável, afinal os autores possuem uma carreira já muito bem iniciada na terra dos super heróis. Mas ou a conta não fecha ou eu sou um asno da matemática. Ou nenhuma das duas coisas e o asno é outro…
O fantasma de Nelson Rodigues já começa a me puxar pelo pé e eu sou obrigado a mandar ele esperar mais um pouco, porque agora eu vou falar do gibi.
Mondo Urbano é formidável. Um gibi inteligente, bem humorado, com uma arte pra lá de atraente e um roteiro engraçadíssimo, onde cada parte da história possui qualidade suficiente para se manter fechada em si só, mas que ao mesmo tempo amarra-se a outro capítulo, muitas vezes nos obrigando a voltar a leitura umas dezenas de páginas antes. Ou seja, a saga criada pelo trio é uma aventura de se ler.
A história conta a ascenção e derrocada de Van Hudson, um roqueiro que toca como o diabo, e de caras comuns que, de uma forma ou de outra, estão ligados à banda liderada pelo endiabrado vocalista.
E tudo gira em torno da amaldiçoada guitarra do roqueiro e de um suposto pacto com o demônio. Você já ouviu a história: venda sua alma e em troca toque como ninguém tocou em toda a criação. Daí o cara some durante um tempo e volta tocando de um jeito sensacional, faz um sucesso estrondoso e depois aparece assassinado em alguma banheira suja de um hotel barato qualquer.
É a mesma abordagem do ótimo filme “A Encruzilhada”, de 1986, com o Ralph Macchio, o eterno Karatê Kid. Que por sua vez foi inspirado nos macabros boatos que rondam a vida e morte de Robert Johnson (1911 – 1938), um dos maiores bluesman da história.
E o que sai disso é um gibi realmente original, que mistura estilos no traço e no roteiro, caminhando com bastante desenvoltura entre diversos gêneros dos quadrinhos, do terror ao policial investigativo.
Ou seja, uma ótima diversão como todos os ingredientes necessários para se tornar um sucesso de crítica e público.
E finalmente o fantasma de Nelson Rodrigues solta sua gargalhada: porque um gibi tão bom passou dois anos no circuito independente sem que nenhuma grande editora o publicasse? Porque uma editora norte americana enxergou o que nenhum editor percebeu em mais de 30 meses? E porque a publicação agora, depois de tantas críticas elogiosas a edição gringa?
Foi necessário que um nome como Stephen King, com quem Albuquerque trabalha na série American Vampire, da Vertigo, elogiasse a obra para que ela adquirisse valor suficiente para ser publicada comercialmente no país de seus criadores?
Nelson Rodrigues cunhou a expressão “complexo de vira-latas” e a definiu da seguinte maneira: (…) a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores (…)
A crônica, publicada originalmente na revista Manchete Esportiva em maio de 58, traçava um paralelo entre a derrota da Seleção Brasileira na final da Copa de 50, em pleno Maracanã, com a insistente mania do brasileiro da época em não acreditar no talento de sua própria seleção. E ia mais longe: acreditava que o brasileiro se envergonhava de seu próprio talento e insistia num auto boicote.
Hoje, cinco vezes campeão mundial, criador de alguns dos maiores gênios que já desfilaram pelos gramados e orgulhoso de possuir em seu currículo um atleta que dificilmente será superado nos próximos séculos, nosso futebol superou sua vira-lata autodepreciação.
Nossos quadrinhos – e principalmente nossos editores – ainda não.
E o excelente gibi Mondo Urbano é a prova mais bem acabada disso.
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