Todos temos cicatrizes. Qualquer serzinho de seis ou sete anos já tem uma coleção delas. Eu tenho, você tem, nossos pais tem.
Antes dos sete anos já tinha deixado minha mãe maluca: pedrada na cabeça, traumatismo craniano, atropelamento, uma dose generosa de soda cáustica confundida com açúcar (nessa quase virei adubo) e por aí vai.
Ainda conservo a cabeça amassada, pinos no pé, pontos no polegar e o péssimo hábito de ficar trombando em tudo. Faz parte da minha personalidade, é quase que uma propensão natural ao desastre doméstico.
Mas também existem outras cicatrizes que não são visíveis. Seus cortes são profundos e, em muitos casos, nunca se cicatrizarão.
Tive um pai talentosíssimo: escrevia e desenhava bem, articulado, era bom de bola, de papo e de mulher. E também de copo. E isso o levou primeiro a desgraça familiar, depois para o túmulo.
Minha mãe sempre foi amorosa, compreensiva e generosa. Mas pegou o touro à unha para criar os três filhos e transformá-los em algo diferente de sua própria tragédia.
Não vou entrar nesse mérito, mas todos temos cicatrizes. Algumas tão bem guardadas que a simples lembrança já causa desespero e dor.
E são exatamente esses sentimentos que embalam o belíssimo Cicatrizes, de David Small (Editora Leya, R$ 40,00 em média)
Aos quatorze anos, meninos ou meninas, nosso corpo é uma brincadeira de mau gosto. Sentimos coisas diferentes de tudo o que se sentiu até então, nossos hormônios explodem o desejo, a adrenalina não nos deixa dormir, se cresce muito em pouco tempo, um monte de pêlos começam a aparecer em lugares que pensamos que nunca teriam aquilo…
Se você tem essa idade, não vai entender o que vou falar agora, mas a festa de verdade começa aí, na adolescência.
Agora imagine você com essa idade exatamente na virada da página da história do século XX: a década de 50. Numa família estranha, com um pai omisso e uma mãe repressora, onde o silêncio era a Lei e todas as coisas importantes eram empurradas para debaixo do tapete.
E com uma porcaria dum caroço em seu pescoço, crescendo vagarosamente, te envergonhando, incomodando, te tornando alguém para quem as pessoas olham do jeito errado de se olhar alguém.
Até que chega o grande dia em que o bom doutor irá retirar aquele cisto.
Quando você acorda, descobre que foi-se o cisto e junto com ele sua voz e toda a vida que você conhecia – e que já não era lá das mais tranquilas.
Eu mal consigo imaginar o impacto disso num garoto de quatorze anos. Não era um cisto, era câncer. Causado pela ingenuidade médica de uma época, onde seu próprio pai teve um papel de destaque.
E ele descobriu sua doença da pior maneira.
David Small produziu um dos gibis mais introspectivos da história. Um gibi construido à partir de sua própria dor. Página a página nos são oferecidas doses de rancor e ódio, de verdades escondidas e ações incompreensíveis. O que teria tudo para se tornar uma história chata e melancólica na verdade se tornou um gibi perturbador. E lindo.
Famoso ilustrador de livros infantis, Small utilizou sua apurada técnica para criar imagens esmagadoras, onde realidade e fantasia se misturam. Dos sonhos próprios da infância até a dor da descoberta de que essa mesma infância chegara ao fim, acompanhamos esse jovem David por caminhos sinuosos, na construção de um caráter forjado no desprezo de sua mãe e em seu silêncio forçado.
Um a um os segredos daquela família são desvendados. A loucura, a doença, a infelicidade, a frustração. Um passeio numa montanha russa desgovernada, com um dos trilhos quebrados bem na sua frente, ainda seria menos conturbada do que a vida daquele menino mudo.
E em nenhum momento – e aí está o principal truque da narrativa – Small caiu na tentação do estereótipo, do maniqueísmo. Seus personagens são complexos e dúbios como devem ser os seres humanos – e não poderia ser diferente. O mérito de Small foi captar, tanto no roteiro quanto nas belíssimas aquarelas, frações daquelas personalidades.
Cicatrizes não é apenas um bom gibi, é uma ótima história. Daquelas que enchem os olhos d’água. Poderia ser um filme, um livro, uma canção ou uma ladainha. Mas para nossa felicidade calhou de ser uma história em quadrinhos. E uma daquelas inesquecíveis, que serão discutidas, conversadas e apresentadas aos nossos filhos.
Algumas cicatrizes nunca serão apagadas de nosso corpo ou nossa memória e Small expôs as suas com uma honestidade surpreendente. Ler seu gibi, viver aquela adolescência trágica, é uma experiência única que nos faz ter um pouco mais de coragem para enfrentarmos nossas próprias poções de dor e desespero.
Muito bom Lillo, outro que fiquei curiosa pra ler... Além da sua critica ter sido ótima como sempre, me identifiquei bastante, em relação as cicatrizes profundas que nunca se cicatrizarão... o caso da personagem pode ser diferente do meu, mas são cicatrizes, e estas sempre doem muito... quero ler!! =)
ResponderExcluirE parabens por hoje, foi muito bom... e o livro nem tremeu... rs ;)
beeijo
Ah Pri. Tem coisas que nem uma vida inteira podem curar. O que a gente pode fazer é ir levando e superar da melhor maneira possível. Acho que vc vai curtir muito esse gibi, é fantástico, real. A dor do cara é palpável (e olha que estamos falando dum gibi)...
ResponderExcluirQuanto a hoje, eu tremi sim, mas disfarcei. Tem sido semanas conturbadas e a emoção fica bastante afetada. Pelo menos vou usar isso nas apresentações do fim de semana.
Beijocas!
Fiquei com vontade de ler... e me lembrei das minhas cicatrizes.
ResponderExcluirWesley, é um gibi impressionante. É como assistir a um drama de Eastwood. É raro ver um gibi com tanta carga emocional. Assim que tiver a oportunidade, confira.
ResponderExcluirUm grande abraço!
a minha adolescência existia um quisto existencial, que nos tirava a voz, hoje esse quisto é chamado de ditadura militar, que nos tirou voz, gesto e, quase, a esperança.
ResponderExcluirUm abraço pra você, canalha!
kkkkkk
As cicatrizes não vem só de problemas familiares ou de uma infância travessa. As vezes vem de uma vez só, para toda uma nação.
ResponderExcluirDe qualquer forma, para quem estiver lendo, a ditadura militar no país foi uma desgraça,em todos os sentidos, mas também proporcionou que pessoas inconformadas com aquela situação levantassem sua voz. E no ramo da arte surgiram seres humanos notáveis. O Gil é um deles: uma baita iluminador, artista sensível, politizado e um dos caras mais aloprados (e leais) que já conheci.
E como não poderia deixar de ser: canalha o cacete!
Lillo;
ResponderExcluirMais um texto totalmente excelente!
Olha, infelizmente, vou precisar suspender a compra de encadernados no primeiro semestre de 2011 e vou fechar o ano comprando um que valha a pena. Graças a você, vai ser Cicatrizes.
Grande abraço!
Serjão!
ResponderExcluirCara, se você tem que suspender as compras dos encadernados mas quer finalizar o ano com um gibi estupendo, compre!
Tô falando sério, é um gibi lindo.
Abração!