Em uma noite de domingo no já distante ano de 2003, voltávamos de um ensaio do Teatro União e Olho Vivo eu, minha esposa e o Wadinho. Estávamos no metrô.
O Wadinho desceu na estação Penha, eu e minha esposa desceríamos duas estações depois. Quando chegamos ao nosso destino – a estação Guilhermina Esperança – um cara enorme, branco, de cabelo raspado e roupas no melhor estilo skinhead levantou do fundo do vagão e me acertou um jeb.
Do nada, de forma gratuita.
Provavelmente eu teria levado uma surra homérica naquela noite – o cara devia ter uns três metros de altura – se não fosse a potência da minha voz. Não faria teatro há duas décadas se não tivesse uma voz das boas.
O grito foi ouvido por toda a plataforma e assustou o brutamontes. A porta do metrô se fechou. Do lado de dentro o agressor, babando de ódio. Do lado de fora eu, com os cacos das lentes do meu óculos espalhados por todo o rosto.
Apesar da pronta ação dos seguranças do metrô, não conseguiram pegar o cara. Mas ficamos sabendo que eu não era a única vítima daquela noite. Ele já havia agredido um nordestino meia hora antes, na estação Sé, entroncamento das linhas vermelha e azul.
A informação só confirmou minha desconfiança. Havia sido agredido pelo imperdoável “crime” de estar conversando com o Wadinho. Na verdade, Oswaldo Ribeiro – ótimo ator, líder comunitário e um dos melhores caras com quem já cruzei na vida.
É claro que o brutamontes não sabia de nada disso. A única coisa que ele enxergou foi a cor da pele do Oswaldo. No distorcido mundo perfeito daquele imbecil, um branquela como eu jamais deveria conversar com um negro.
O caso não teve maiores desdobramentos e a única coisa que perdi foi o dinheiro de um óculos novo e um pouco da minha dignidade latina.
Mas milhares de outros casos de racismo acontecem todos os dias. Alguns num preconceito velado e interiorizado desde os tempos do Império. Outros necessitando apenas de um estopim, seja uma música um pouco mais alta no apartamento ao lado, seja uma partida de futebol ou ainda uma fechada no trânsito.
O preconceito existe e alimenta a violência. É só uma questão de querer enxergar.
Nas primeiras semanas após o ocorrido, senti o ódio próprio dos derrotados aliado a um sentimento de pura impotência. Depois – como de costume – resolvi apagar o episódio da minha cabeça.
E apagado ficou até algumas semanas atrás. Foi quando li Área de Segurança Gorazde: A Guerra na Bósnia Oriental, de Joe Sacco (Conrad, 1998).
Como disse, o preconceito alimenta a violência. E se a simples amizade entre duas pessoas de etnias diferentes é capaz de causar um ato gratuito de violência, imagine um sentimento de ódio arraigado há décadas numa nação inteira, só esperando uma chance para ser livremente exposto.
E agora imagine que essa chance, esse estopim, não seja uma conversa entre um negro e um branco, nem uma briga de trânsito, mas sim a autorização governamental para uma limpeza étnica, onde preconceito e assasinato são as palavras de ordem.
É exatamente disso que trata Gorazde.
Gorazde era – durante a Guerra nos Balcãs – um enclave, ou seja, uma cidade Bósnia em pleno território dominado pelos Sérvios. Apesar de ser declarada como área de segurança pelas Nações Unidas, a cidade foi deixada à própria sorte durante mais de 03 anos.
Gorazde não deve ser muito diferente das pequenas cidades do interior. É bem capaz que seja ainda menor do que muitas cidadezinhas paulistas, mineiras ou gaúchas. Formada basicamente de gente pacata, onde todos se conheciam, Gorazde foi tomada de assalto pela guerra.
De maioria muçulmana, se tornou um alvo da limpeza étnica promovida pelo líder sérvio Slobodam Milosevic. E as poucas centenas de quilômetros que a separam da capital Saravejo a condenaram ao isolamento.
Sem apoio militar, contou com a força de seus moradores para resistir a um cerco tão longo.
Uma história de crianças que comiam às mesas umas das outras e, quando adultas, cometeram atrocidades inimagináveis sob a égide da irracionalidade. Um relato contundente sobre a necessidade de se levantar todas as manhãs sem saber ao certo como se chegaria ao final do dia. Um retrato de pessoas comuns, com hábitos comuns e que de uma hora para outra viram a realidade se contorcer sob seus pés.
Uma história de guerra contada de uma maneira absolutamente honesta.
Joe Sacco é um dos herdeiros dos quadrinhos underground. E soube aproveitar muito bem isso politicamente. Não se contentou em desmoralizar instituições ou costumes e sim expôs – com rara habilidade – os contrastes próprios de uma situação onde todas as leis do bom senso foram jogadas por terra. Onde uma vida humana era tão valorizada quanto um par de meias sujas.
Da impotência da ONU até os jogos políticos decidindo o destino daquela cidade, nada escapa da narrativa ferina de Sacco.
Gorazde não é um gibi de guerra onde um imponente Sargento Rock vem libertar os pobres cidadãos indefesos do julgo do opressor. Mas sim um gibi onde mães morrem protegendo filhos que morrerão logo depois, onde famílias separadas nunca mais se encontrarão.
Gorazde é um gibi de pessoas comuns chorando sobre túmulos anônimos.
Aprendi mais sobre o conflito nos Balcãs lendo Gorazde do que em todos os documentários sobre o tema. A narrativa gráfica imprimiu àquela guerra uma proximidade muito mais eficaz do que a imagem em movimento. É impossível ler o gibi e não sentir uma desoladora desesperança.
Do episódio no metrô até a sangrenta guerra existe uma distância incalculável. Mas Gorazde nos faz reflitir até que ponto pode chegar a imbecilidade e crueldade humanas quando o preconceito e o ódio são livremente incentivados.
Num país onde a segurança pública é uma piada de mau gosto, onde grassa a corrupção em todas as esferas do poder e as classes sociais menos favorecidas são cada vez mais violentadas em seus direitos civis, Gorazde é um alerta perturbador.
Para saber mais: Crimes de guerra num documentário em Quadrinhos, no Mais Quadrinhos, de Wellington Srbek.
Branquelo que sou - descendente de um austríaco que nasceu no mesmo ano que Hitler e também lutou na Primeira Guerra Mundial, mas que veio para o Brasil nos anos 20 refazer a vida e aqui, já nos anos 40, sofreu perseguição por ser "alemão" - eu juro por Deus que não consigo entender o racismo! Claro que entendo as questões sócio-históricas que envolvem este problema, mas o que não consigo na verdade entender é como alguém pode olhar para outra pessoa e achar-se superior a ela por sua cor da pele, crença religiosa ou orientação sexual. Afinal, o que faz alguém melhor do que outra pessoa é a forma como se porta na vida, é o respeito que tenha ou não pelos outros, não é?
ResponderExcluirMais uma vez, Lillo, seu texto foi além dos quadrinhos, dando-nos um depoimento humano e pessoal que traz mais profundidade e ressonância ao tema tratado.
Enquanto eu lia sua nova postagem, pensei: puxa e aquele texto que eu escrevi tão técnico, ficou no chinelo... Mas no fim tive a grata surpresa de sua indicação - à qual só posso agradecer.
Bom, já tomei espaço demais aqui, mas a culpa foi do seu ótimo texto - e que venham outros, amigo Lillo!
Wellington,
ResponderExcluirEu também nunca consegui entender o racismo. Não consigo achar uma única linha de pensamento coerente em alguém que agride o outro pela cor de sua pele, por sua opção religiosa ou sexual. Por isso Gorazde me impressionou tanto. Quando li o gibi tive as mesmas sensações que havia sentido anos antes. Imagino o que aquelas pessoas não sofreram. Sacco retratou seres humanos como eu ou você, que tiveram que tomar decisões drásticas ou instintivas em nome da mais básica das necessidade humanas: a sobrevivência. E tudo porque eram diferentes.
E isso torna o gibi uma leitura necessária.
E você sempre generoso. Obrigado pelos elogios. E claro que eu não poderia deixar de citar o seu texto, ele é ótimo e possui a competência e habilidade habituais de suas matérias, instigando ainda mais a curiosidade sobre esse notável repórter/desenhista.
Grande abraço, meu amigo.
Além de um grande quadrinista, Joe Sacco é muito gente boa. Em 1997 (estamos ficando velho) assisti a uma palestra dele na primeira FIQ, em BH. Depois da palestra fui conversar com ele com meu inglês macarrônico. Como ele viu que eu estava muito interessado no trabalho dele e que na época não tinha nada publicado no Brasil, ele disse que eu o procurasse no dia seguinte na Serraria (onde acontecia a FIQ) que ele traria um gibi dele pra mim. E não é que no outro dia ele tinha lembrado e estava lá com uma edição inédita? Em troca ele levou um boné do Cruzeiro.
ResponderExcluirGrande Marcelo!
ResponderExcluirQue história é essa de que estamos ficando velhos? Cara, eu tô cada vez mais novo. Deve ser alguma coisa na água aqui de Itaquera, sei lá...
Quando nos encontrarmos vou querer ver essa preciosidade, daí você me conta a conversa que tiveram. Bom saber que o personagem em que ele auto se retrata não é ficção.
Um grande abraço, meu velho.
Lillo, o racista é o analfabeto social!
ResponderExcluirbeijos na KKátia!
e na Bú também!
Grande Gil,
ResponderExcluirO nome dessa seção foi tirado de um comentário seu, obrigado.
Só um estúpido doentio pode crer que a brancura de sua pele o faz melhor que outro ser humano.
É nosso dever lutar contra isso.
Beijos na Sara, diga a ela que torcemos pela sua melhora.
Grande irmão,
ResponderExcluirÉ sempre um prazer ler um texto seu... E esse me trouxe mais um momento de satisfação.
Concordo com tudo que foi dito no texto e nos comentários... Racismo é inconcebível...
Srbek foi perfeito em dizer que seu texto foi além dos quadrinhos... O que deixou um gostinho a mais, como se fosse a Pimenta da mukeka... :-)
Texto digno de introdução do álbum do Sacco e com um trecho que é digno de ficar entre aspas na quarta capa do álbum, e já até imagino como seria:
"Gorazde é um gibi de pessoas comuns chorando sobre túmulos anônimos."
De Lillo Parra, na sua introdução.
Fantástico.
É um prazer ser padrinho deste blog... que a cada dia cativa mais!
Abração do irmão baiano.
Lucas
Meu irmão, é sempre uma satisfação sua visita. Agradeço imensamente os elogios. Não sei se tenho cacife pruma introdução, mas obrigado. Este foi um post diferente, com uma pegada muito pessoal e - mesmo anos depois - indigesta. Mas fiquei muito satisfeito com o resultado.
ResponderExcluirE para quem ainda não sabe, Lucas foi - ao lado da Dona Patroa - o principal incentivador deste Blog. Por isso, merecidamente, o considero o Padrinho do Gibi Rasgado.
Abraços do seu irmão paulistano,
Lillo