segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Doce de Leite & Café Forte

“Quadrinho é minha cachaça”

Flávio Colin

Flavio_Colin

Eu ainda era contínuo (um nome bacana para office boy) na Pecúnia Financeira, no centro de São Paulo. Tinha de 14 para 15 anos e estava fascinado por um cara que tinha acabado de sair nas bancas num gibi do Batman. Aquele gibi era uma das coisas mais alucinadas que eu lera até então. E aquele traço era fenomenal.

O tempo provou que Frank Miller, apesar das oscilações em sua carreira, é um gênio narrativo. E seu Cavaleiro das Trevas é um clássico incontestável.

Mas eu era uma criança e deixava me impressionar muito facilmente. Quando li o Cavaleiro das Trevas, embora não soubesse, já havia lido outros gênios. Jack Kirby e seu Quarteto Fantástico, Neal Adams naquele mesmo Batman, Lee Falk e Ray Moore no Fantasma, Al Capp e sua subversiva família Buscapé…

E um cara chamado Colin.

Mas como disse, eu era ainda uma criança. Nunca naqueles poucos anos de vida teria conseguido entender que o traço de Miller é uma brincadeira infantil frente à expressividade crua e cinza de Flavio Colin.

Só fui compreender isso quase duas décadas depois.

Flavio Colin foi – sem dúvida alguma – o maior gênio dos quadrinhos nacionais. Com seu estilo único e estilizado, desenhou de tudo: desde as aventuras policiais do “O Anjo”, no final da década de 50, até quadrinhos eróticos na gaúcha Grafipar, passando boa parte de sua produção entretido com histórias de terror (que ele mesmo confessou ser um de seus estilos preferidos).

Mas Colin, dizem os amigos, morreu entristecido. Amargurado por não ter condições dignas de trabalho e por não ter conseguido alcançar um de seus maiores sonhos, pelo qual lutou por toda a vida: uma indústria de quadrinhos legitimamente nacional.

Por quase 05 décadas, esse exímio narrador embalou a infância de pelo menos 03 gerações de leitores. Nos últimos anos de vida, sua produção – e a da maior parte dos grandes desenhistas nacionais – foi definitivamente ignorada em favor da publicação de materiais importados.

Mas o último ato desse espetáculo chamado Flavio Colin nos reservou uma cena belíssima, daquelas que nos comovem e dão a noção exata de tudo o que tínhamos e perdemos.

Srbek & Colin

Wellington Srbek é um jovem veterano. Apesar de seus 30 e poucos anos, o roteirista mineiro já tem uma década e meia de carreira. Sua produção independente destaca-se pela qualidade de seus roteiros, sempre intensos e muito bem costurados. O que ele faz em meia dúzia de páginas muita gente tarimbada não consegue em oitenta.

Seu último trabalho – Memórias Póstumas de Brás Cubas, em parceria com J.B.Melado – é uma aula de como se adaptar uma obra literária para os quadrinhos sem descaracterizá-la.

Não bastasse isso, Srbek proporcionou aos quadrinhos nacionais a oportunidade única de vermos Colin em sua melhor forma.

A parceria entre os dois durou de 1998 a 2002 e foi responsável por um álbum de 144 páginas e mais 04 histórias curtas.

untitledE já começamos com um clássico dos quadrinhos nacionais: Estórias Gerais (Troféus Angelo Agostini de Melhor Roteirista e Melhor Desenhista de 2001, Troféus HQ MIX de Melhor Graphic Novel Nacional e Melhor Roteirista de 2001).

Mais do que um álbum de quadrinhos, é uma homenagem ao sabor brasileiro de se contar histórias. De Guimarães Rosa à brejeirice própria dos caboclos de nosso sertão, o roteiro de Srbek passeia pelo norte das Gerais do começo do século XX, com direito a jagunços, pactos demoníacos, matas fechadas com onças famintas, romances e mortes violentas.

Mas apenas a boa história não parece ter sido suficiente para esse talentoso roteirista. Ele escreveu toda a narrativa pensando unicamente no traço de Colin. Não serviria outro. Aquela era uma história para um desenhista em especial.

O resultado é simplesmente um dos melhores gibis brasileiros de todos os tempos. Colin não poupa talento, seus quadros possuem uma riqueza de detalhes raramente vista em qualquer outro artista. Mas não pensem que para isso ele “recheou” suas cenas com elementos decorativos. Sua virtuosidade reside exatamente em seu traço limpo, exuberante e minimalista. Basta conferir a cena do ocaso do vilão principal da história – Antonio Mortalma – com sua cabeça na bandeja da mucamba de quem desfrutara prazeres forçados na noite anterior. Poucas vezes se viu tanto ódio e desprezo materializados de forma tão genial num único quadro.

Finalizado em 1998 mas somente lançado em 2001, com o apoio da Prefeitura de Belo Horizonte, Estórias Gerais foi relançado em 2007 pela Conrad, dessa vez acompanhado de “Estória de Onça”, narrativa curta com um dos personagens da trama principal. Teve ainda uma edição espanhola em 2006.

"A Companhia das Sombras" (lançada em 2000 na revista Mirabilia – Troféu HQ MIX de Melhor Revista de Aventura & Ficção), "Uma Noite no Fim do Mundo" (lançada em 2001 na revista Fantasmagoriana - Troféu Angelo Agostini de Melhor Roteirista e Troféu HQ MIX - Melhor Graphic Novel Nacional) e "Admirável Novo Mundo" (lançada em 2002 na revista Mystérion) são 03 histórias de terror que se completam e melhoram ainda mais quando lidas em sequência, tamanha sua unidade narrativa.

03 histórias sobrenaturais passadas em épocas distintas, com seres imortais, representações bíblicas e folclóricas e uma boa quantidade de fantasmas: os roteiros de Srbek foram como um bom prato de tutu a mineira para o mestre Colin.

FantasmagorianaVemos ali algumas das mais belas páginas de nossos quadrinhos de terror. A cena da Procissão das Almas em “Uma Noite no Fim do Mundo” é um deleite: centenas de almas desgraçadas, conduzidas por um padre morto, rumo a uma missa macabra e trágica. Cada detalhe do roteiro é multiplicado pela exuberante arte.

Em “A Companhia das Sombras”, temos em apenas 12 páginas uma das melhores histórias de terror dos últimos tempos. O Cortejo Fúnebre da história é magnífico, com destaque especial para a rastejante Preguiça (sim, aquela dos sete pecados capitais), uma visão impressionante.

Em “Admirável Mundo Novo” temos a última história produzida pelo Mestre Colin. Não percebemos sua idade naquelas páginas, não vemos sequer uma única pista de que aquelas seriam suas últimas ilustrações. O que vemos é um desenhista vigoroso, no esplendor de sua técnica, conduzindo o leitor por um Rio de Janeiro fantasmagórico do século XIX.

Colin escreveu em uma de suas inúmeras cartas a Srbek: “Você é o roteirista que sempre me faltou.”

Ao lermos a produção da dupla podemos perceber que as palavras do velho mestre não foram apenas uma lisonja ao parceiro. Em cada história, em cada quadro, percebemos algo sagrado numa história em quadrinhos: paixão.

Não são apenas histórias bem feitas, são algo vivo, orgânico, retorcendo-se sob os dedos de quem segura o gibi. Nunca antes se viu e infelizmente nunca mais se verá Colin tão a vontade em uma história.

É doce de leite com café forte, numa mistura saborosa e indecifrável.

Logo depois de “Admirável Mundo Novo”, Colin resolveu sair de cena, quase em silêncio. Não esperou os aplausos pois não guardava esperanças de que eles viessem. Tampouco a platéia entendeu que o espetáculo havia terminado. Apenas alguns raros espectadores e o pessoal da coxia perceberam o que aconteceu.

Num mundo perfeito – menos mesquinho e egóísta, onde o lucro fácil seria deixado de lado a favor do talento – Colin figuraria ao lado dos grandes gênios em qualquer lista de qualquer lugar do mundo. Sendo estudado e admirado como Eisner, Kirby ou Tezuka.

Mas isso num mundo perfeito. Nesse nosso cruel feudo editorial, apenas os familiares, os companheiros de trabalho – antigos como Shimamoto e Ota ou novos como Srbek e Diniz – acompanhados de antigos fãs, entenderam o tamanho da dor daquele 13 de agosto de 2002.

Eu tinha 14 anos quando fiquei impressionado com “O Cavaleiro das Trevas” mas demorei quase 20 para entender toda a genialidade daquele cara que eu lia nas revistas Calafrio e Spektro da minha infância.

Espero que as crianças que hoje facilmente se impressionam com mangás ou essas intermináveis séries mutantes sejam mais rápidas que aquele inocente adolescente de 1987 e tenham um dia o desprendimento de desfrutarem o prazer único de ler um verdadeiro gênio do traço.

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Para saber mais sobre a dupla Srbek/Colin, acesse o marcador Flavio Colin, no Mais Quadrinhos.

Não deixe também de acessar a excelente entrevista com Flavio Colin publicada pelo Universo HQ.

sábado, 20 de novembro de 2010

12 Razôes Para Amá-la…

capa_250Confesso que fui um canalha. Não me orgulho disso, é verdade, mas fui um canalha da pior espécie. Possuia uma vida dupla: até um determinado horário era um bom moço, namorava sério – na casa dos pais dela – tinha emprego fixo e era tido por todos como um menino “muito ajuizado, uma benção para sua mãe”; depois da meia noite eu virava abóbora – literalmente.

Deixava minha namorada na porta da casa dela, com aquelas juras de amor próprias da adolescência e, ao virar a esquina, entrava num velho passat que pertencia ao meu amigo Cassio, e não era um desses modernos modelos que desfilam nas ruas hoje em dia e sim aquele passat velhão, que corria feito o diabo.

E íamos pra vida de verdade.

Nessa época – como já relatei na resenha de Xampu – eu era um completo alucinado. E infiel – muito infiel.

19 de junho de 1996. Uma noite de sábado como outra qualquer. Chegamos – eu e o Cassio -  no bar do Aranha, lá na Vila Formosa, sentamos e foi então que eu vi uma guria magrela, esboçando uma dança ao som de Chico Cesar. O Alê – principal músico do bar na época – sempre mandou muito bem Chico Cesar.

A música, a luz vascilante e a silhueta daquela menina formavam uma paisagem perfeita.

Eu tinha que beijá-la. Pedi pro Aranha mandar um torpedo enrolado na boca de uma garrafa de cerveja, isso num guardanapo de papel – celulares ainda eram artigos de luxo na época. Não lembro o que escrevi, mas devia ser bonito, porque o torpedo voltou. Lembro de memória até hoje o que estava escrito:

“Estou me sentindo como o poeta, que viu o mar pela primeira vez”.

Era uma referência à música Todo o Azul do Mar, de Flavio Venturini e Ronaldo Bastos, imortalizada na voz do primeiro. O nome da menina era Cátia e começava ali a melhor viagem da minha vida.

Mas eu já volto nesse assunto. Vamos falar um pouco sobre gibis.

Há cerca de 03 semanas comprei 12 Razões Para Amá-la, de Jamie S. Rich e Joëlle Jones. Uma edição muito bem acabada da Devir Livraria, p&b, formatinho, lançada em 2007 e com respeitáveis 154 páginas.

Quadrinhos românticos? Eu?

Bem, vá lá. Era a melhor coisa que tinha na banca mesmo…

O gibi conta, em ordem aparentemente aleatória, 12 episódios da vida amorosa de Gwen e Evan. À primeira vista, parece que o gibi não tem nenhum roteiro, mas você vai perceber que ele existe assim que terminar a última página. E é um roteiro excepcional.

E não pense que é uma daquelas histórias fofinhas, cheias de corações esteriotipados, onde o conflito centra-se na busca do amor da donzela pelo príncipe encantado e nos perigos que enfrentarão até o “felizes para sempre”.

Não existem príncipes ou donzelas ali. Apenas um casal. Duas pessoas se curtindo e se odiando.

Uma vida a dois – qualquer vida a dois – pode dar um filme bom ou ruim. Sempre achei que o roteiro é escrito durante o relacionamento. Pega-se 04 ou 05 momentos cruciais na vida de qualquer casal e você terá um filme. Esses momentos podem ter ocorrido em um ano, dez ou cinquenta. Se você souber trabalhar tais momentos em duas horas de projeção você terá um sucesso de bilheteria.

Apenas 05 momentos. Todo o restante do tempo você se preparou para ou sofreu as consequências de um daqueles momentos. São essas situações que redefinem toda uma existência.

A história de duas pessoas pode ser vista como um conto de fadas ou um pesadelo. Só depende da qualidade do roteirista.

Pois bem, 12 Razões Para Amá-la tem um que é excepcional. Jamie S. Rich captou com inusitada beleza e realismo momentos de ternura, ódio e amor. Brigas banais, noites inesquecíveis, indiferença, tesão: o roteiro de 12 Razões é o roteiro de uma vida igual a vida de qualquer um de nós, só que em quadrinhos. A forma como os capítulos vão se encaixando na sua cabeça chega a ser assustadora, tal sua semelhança com os processos físicos da memória. Uma lembrança levando à outra, que pode ter acontecido antes ou depois daquele momento de que você se lembrou primeiro.

preview_006A arte de Joëlle é outro ponto que merece destaque. Seu estilo é muito próximo ao Mangá, mas apenas no traço.  Sua composição de cada quadro é limpa e elegante. Ela se utiliza daquela expressividade exagerada tão comum nos quadrinhos orientais apenas em momentos chave dentro de cada capítulo, aumentando ainda mais a sensação de deja vu  que o excelente roteiro já proporciona.

Naquela noite de 1996 minha vida virou de cabeça pra baixo. Terminei aquele namoro certinho de 07 anos e comecei a escrever um outro roteiro, com todos os ingredientes possíveis: ora doces, ora amargos, e muitas vezes com tudo isso misturado.

Aquela mulher está ao meu lado até hoje. Valeu a pena?

Cristo! Ela faz a vida valer a pena.

Ela é a principal razão pela qual escrevo, mesmo que seja sobre quadrinhos. Ela é tudo o que eu preciso para continuar respirando.

12 Razões Para Amar me fez recordar que aquele torpedo – um ato tão banal para mim na época – foi a maior decisão que tomei em minha vida e que a mudou de uma forma irremediável.

Fez eu me lembrar que tudo o que gosto e odeio em minha esposa é exatamente o motivo de estarmos juntos até hoje.

12 Razões Para Amar não tem um final feliz mas tem um final perfeito. É a vida de verdade que eu encontrei quando subi naquele passat naquela noite de 1996.

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sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Lucas da Feira e os esquecidos da história

“Mas os senhores não acham que existem temas muito mais nobres que a história de um traidor da Pátria?”

A pergunta foi feita a César Vieira em 2000, por um tenente da Marinha, no Rio de Janeiro, durante as pesquisas de campo sobre João Cândido Felisberto, timoneiro que em 1910 amotinou-se com centenas de outros marujos e fizeram a Marinha – e o Brasil – dobrarem-se de joelhos aos revoltosos. Sua reinvidicação? A abolição dos castigos corporais naquela que era uma das mais poderosas forças náuticas de seu tempo. Uma Marinha que possuía os navios de guerra mais modernos do mundo mas que ainda chibateava seus praças, quase que na totalidade negros pegos à força ainda adolescentes para servirem à Pátria.

O episódio ficou conhecido como a Revolta da Chibata e é até hoje um tabú na Marinha. Mas provavelmente você nunca ouviu falar dele. Poucas linhas lhe são dedicadas nos livros escolares e João Cândido, seu líder, morreu na mais completa miséria. Só recentemente foi reconhecido como herói nacional, sob protestos do oficialato daquela Arma.

O Teatro Popular União e Olho Vivo – grupo fundado em 1966 e do qual faço parte há dez anos – sempre primou por contar a história por trás da história, onde o povo é o sujeito da ação e não mero espectador.

Aquela pergunta foi respondida com a estréia do belíssimo espetáculo João Cândido do Brasil – A Revolta da Chibata, em 2001, no Teatro Municipal de Santo André. O texto da peça, de autoria do próprio César, foi publicado em 2003, pela Casa Amarela.

Só contei isso porque poucos dias atrás recebi um pacote da Bahia, de um coletivo de jovens quadrinistas auto denominados Área 71. No pacote uma educada carta explicando o projeto e 03 gibis: Área 71 – uma coletânea de histórias curtas de jovens e veteranos autores baianos; Kuei e a senhora de Sárvar – um mangá sobre um planeta Terra desolado e dominado por criaturas sobrenaturais, de autoria de Marcelo Lima e Joel Santos; e Lucas da Vila de Sant’Anna da Feira, de Marcos Franco, Marcelo Lima e Helcio Rogério.

E foi Lucas da Feira quem me chamou a atenção.

lucas

O gibi conta a história de um escravo fugido transformado em bandoleiro e que atuou na região de Feira de Santana na primeira metade do século XIX. Herói do povo, assassino cruel, psicopata ou  rebelde? Ninguém sabe ao certo. Contado em córdeis, Lucas da Feira se tornou uma lenda popular.

Pela quase inexistência de dados oficiais que permitam a reconstrução de sua vida, essa figura fascinante foi retratada no gibi, misturando as poucas informações existentes com muita inventividade e competência narrativa.

Lucas da Feira é um gibi de gente grande e merece ser lido.

Marcos Franco e Marcelo Lima acerteram em cheio, tanto na contextualização histórica quanto na caracterização dos personagens. O uso de um linguajar próprio daquela região nos diálogos – que poderia se configurar num problema – foi habilmente resolvido. Menos contido do que no recente Bando de Dois, de Danilo Beyruth, os autores utilizaram-se de expressões já assimilidas Brasil afora graças às novelas televisivas e a música popular. E caso tenha alguma palavra que você não conheça não há problema: no final do gibi você encontrará um pequeno glossário. E acredite, ele será bastante útil, pois além do significado das expressões traz também referências de cidades e povoados citados no gibi.

Isso, além de ser um ótimo recurso, revela também a ambição didática da obra. Mas antes de entrar nesse ponto vamos falar um pouco da arte.

Hélcio Rogério construiu o gibi com muita propriedade. Seu traço transita entre a expressividade crua de Eduardo Risso e a clássica beleza de Mozart Couto, criando um Lucas da Feira extremamente real, onde a frieza e crueldade de suas atitudes – assim como seus valores morais – são facilmente identificadas em suas expressões. E isso não é pouca coisa – ainda mais numa obra independente. Mas Hélcio não é nenhum aventureiro, já está ralando nos quadrinhos desde o final dos 90 e sua experiência fez a diferença no bom roteiro do gibi.

Mas Lucas da Feira possui um ponto fraco. E ele reside exatamente em sua ambição didática.

Suas 48 páginas – 30 de história – são um fragmento muito curto da história de uma personagem tão interessante, o que obrigou os autores – ainda que o tenham feito com habilidade – a apressarem ainda mais a curta narrativa devido à necessidade de inclusão de dados básicos sobre a contextualização histórica, além das passagens obrigatórias no nascimento, infância e morte do protagonista.

Com isso, Lucas da Feira perde em profundidade, sobretudo política. E um personagem como esse, numa época em que o Brasil apenas engatinhava como nação, merece ser melhor dimensionado politicamente.

Numa história maior, de 80 a 100 páginas por exemplo, as informações didáticas seriam melhor incorporadas à narrativa e sobraria espaço para os autores explorarem a questão racial naquele Brasil escravocrata. Além disso, haveria a oportunidade de uma deliciosa discussão sobre quais interesses políticos permitiram que um escravo fujão causasse terror às classes dominantes durante duas décadas quase que impunemente.

Mas isso não tira o brilho de um ótimo gibi, sobre uma personagem que ainda tem muito a revelar em papéis empoeirados pelos séculos ou manuscritos mofados em algum baú dos tempos do Império. Que assim como o valente timoneiro do início dessa crônica, pode ter sido considerado um bandido simplesmente pelo fato de que sua luta não era a mesma daqueles que escreveram a história oficial.

Lucas da Feira bem pode ter sido um assassino cruel como um verdadeiro herói popular. E sua história deve ser resgatada. Nesse sentido, o gibi Lucas da Vila da Feira de Sant’Anna se configura como uma ótima e talentosa contribuição.

 

Para adquirir Lucas da Feira encaminhe um email para lucasdafeirahq@gmail.com.

Para saber mais sobre este e outros lançamentos do coletivo Área 71 acesse www.roteirizandohq.wordpress.com.