quinta-feira, 28 de outubro de 2010

O melhor táxi que já peguei

Metrô Itaquera, quarta feira, 27 de outubro, 21:43h…

Dezessete minutos para Corinthians e Flamengo. Se o ônibus estivesse no ponto daria tempo. Mas claro que não estava…

Até chegar o outro perderia pelo menos 15 minutos do primeiro tempo. Não pensei duas vezes, fui para o ponto de táxi. Sorri com a fina ironia da situação.

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O condutor, um barbudo de sorriso pronto, perguntou o destino. Mal tinha engatado a primeira já começou o bate papo (ítem obrigatório do serviço, deve estar incluso na tarifa):

- Será que esse estádio sai?

Olhei para o enorme terreno onde será o futuro estádio do Corinthians.

- Chefe, nesse momento eu tô mais interessado em saber se ele ganha do Flamengo hoje.

O condutor não entendeu o recado e continuou desfiando seu repertório de perguntas e comentários prontos. Foi então que eu me lembrei do Lima.

O Lima é um velho amigo, conheço pra mais de 20 anos. Entre as muitas qualidades que tem, se sobressai sua monumental capacidade de contar lorotas. E com a mais absoluta seriedade. Pudera, o Lima também é taxista. Todo taxista que se preza é um contador de histórias e sempre tem um causo que beira o absurdo. O Lima – o maior que conheci – tem pelo menos uma dúzia de histórias que rivalizam com os melhores contos do Cortazar.

Sorri novamente com a ironia. Peguei o taxi porque estava atrasado, mas só estava atrasado porque fui no bar São Cristóvão naquela noite, justamente para o lançamento de taxi, do Gustavo Duarte(R$ 10,00, maiores informações no blog do autor).

E só tem duas coisas pelas quais eu troco um jogo do Timão por livre e espontânea vontade: a dona Patroa (às vezes nem tão espontânea vontade assim) ou um bom gibi.

E taxi não me decepcionou. Assim como Có!, taxi é um gibi memorável.

A premissa chega a ser diabólica de tão simples: um jazzista esquece seu case num bar e, já às portas do lugar onde irá tocar, percebe seu esquecimento. Ítem fundamental para a longa noite que virá, numa corrida contra o tempo, o músico pega o primeiro táxi que passa. Será o início de uma das noites mais alucinantes já vistas nos quadrinhos nacionais.

Gustavo aproveita o gibi para prestar uma divertida homenagem a uma de suas paixões: o jazz. Li na internet uma declaração do Gustavo dizendo que taxi possui quatro participações especiais de músicos de jazz, todos ainda vivos. Poderia dizer que não vou contar aqui quem são para não estragar a surpresa. Mas seria uma mentira deslavada. É por isso também, claro. Jamais faria o papel de contador de final de filme em fila de cinema. Mas a verdade é que embora o gênero me seja agradável aos ouvidos, não entendo absolutamente nada de jazz. Ainda assim, a habilidade gráfica do autor fez esse completo ignorante musical reconhecer na hora que aqueles caras não eram apenas personagens na história, mas sim músicos de verdade.

Habilidade gráfica e narrativa, aliás, são o ponto alto do gibi. Novamente Gustavo conta uma história sem se utilizar de diálogos. O solitário balão de fala, desta vez, é também musical. E tão genial que você consegue ouvi-lo.

Seu traço preciso e elegante se alia ao domínio narrativo, conduzindo o leitor sem que ele o perceba. Tarefa difícil para qualquer narrador, mas que o autor desempenha com competência impressionante.

aplicacao_brancoGustavo é um mestre do detalhe. No gibi sobram referências, do próprio bar São Cristóvão até a “baratinha” (aqueles fuscas que a polícia usava de viatura, lembram?), passando pelo táxi retrô (com seu taxímetro modelo anos 70) e não se esquecendo do centenário Norusca (na melhor homenagem do gibi), Gustavo nos brinda com tudo o que nossa memória pode lembrar.

Como em toda boa história de taxista, o absurdo está presente. Até parece história de pescador. Na verdade, parece muito. E aí está uma das muitas piadas do gibi.

A cereja do bolo fica por conta de duas outras participações especiais. Dessa vez vindas diretamente de Có!.

Acho que vou comprar taxi pro Lima. Ele não curte quadrinhos mas tenho a impressão que vai acabar se apropriando de algumas situações e as contando como se fossem suas. Imagino a cara incrédula de seus passageiros quando ele, com a mais absoluta cara de pau, contar do dia que usou o afogador pra escapar de uma enrascada.

Acabei chegando em casa a tempo pro apito inicial. O jogo terminou empatado. Olho para taxi, aberta no autógrafo do Gustavo. Definitivamente, o Timão até poderia ter perdido que a noite – ainda assim – estaria no lucro.

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terça-feira, 19 de outubro de 2010

Gorazde e aquilo que o mundo se recusou a ver

Em uma noite de domingo no já distante ano de 2003, voltávamos de um ensaio do Teatro União e Olho Vivo eu, minha esposa e o Wadinho. Estávamos no metrô.

gorazdeO Wadinho desceu na estação Penha, eu e minha esposa desceríamos duas estações depois. Quando chegamos ao nosso destino – a estação Guilhermina Esperança – um cara enorme, branco, de cabelo raspado e roupas no melhor estilo skinhead levantou do fundo do vagão e me acertou um jeb.

Do nada, de forma gratuita.

Provavelmente eu teria levado uma surra homérica naquela noite – o cara devia ter uns três metros de altura – se não fosse a potência da minha voz. Não faria teatro há duas décadas se não tivesse uma voz das boas.

O grito foi ouvido por toda a plataforma e assustou o brutamontes. A porta do metrô se fechou. Do lado de dentro o agressor, babando de ódio. Do lado de fora eu, com os cacos das lentes do meu óculos espalhados por todo o rosto.

Apesar da pronta ação dos seguranças do metrô, não conseguiram pegar o cara. Mas ficamos sabendo que eu não era a única vítima daquela noite. Ele já havia agredido um nordestino meia hora antes, na estação Sé, entroncamento das linhas vermelha e azul.

A informação só confirmou minha desconfiança. Havia sido agredido pelo imperdoável “crime” de estar conversando com o Wadinho. Na verdade, Oswaldo Ribeiro – ótimo ator, líder comunitário e um dos melhores caras com quem já cruzei na vida.

É claro que o brutamontes não sabia de nada disso. A única coisa que ele enxergou foi a cor da pele do Oswaldo. No distorcido mundo perfeito daquele imbecil, um branquela como eu jamais deveria conversar com um negro.

O caso não teve maiores desdobramentos e a única coisa que perdi foi o dinheiro de um óculos novo e um pouco da minha dignidade latina.

Mas milhares de outros casos de racismo acontecem todos os dias. Alguns num preconceito velado e interiorizado desde os tempos do Império. Outros necessitando apenas de um estopim, seja uma música um pouco mais alta no apartamento ao lado, seja uma partida de futebol ou ainda uma fechada no trânsito.

O preconceito existe e alimenta a violência. É só uma questão de querer enxergar.

Nas primeiras semanas após o ocorrido, senti o ódio próprio dos derrotados aliado a um sentimento de pura impotência. Depois – como de costume – resolvi apagar o episódio da minha cabeça.

joeE apagado ficou até algumas semanas atrás. Foi quando li Área de Segurança Gorazde: A Guerra na Bósnia Oriental, de Joe Sacco (Conrad, 1998).

Como disse, o preconceito alimenta a violência. E se a simples amizade entre duas pessoas de etnias diferentes é capaz de causar um ato gratuito de violência, imagine um sentimento de ódio arraigado há décadas numa nação inteira, só esperando uma chance para ser livremente exposto.

E agora imagine que essa chance, esse estopim, não seja uma  conversa entre um negro e um branco, nem uma briga de trânsito, mas sim a autorização governamental para uma limpeza étnica, onde preconceito e assasinato são as palavras de ordem.

É exatamente disso que trata Gorazde.

Gorazde era – durante a Guerra nos Balcãs – um enclave, ou seja, uma cidade Bósnia em pleno território dominado pelos Sérvios. Apesar de ser declarada como área de segurança pelas Nações Unidas, a cidade foi deixada à própria sorte durante mais de 03 anos.

Gorazde não deve ser muito diferente das pequenas cidades do interior. É bem capaz que seja ainda menor do que muitas cidadezinhas paulistas, mineiras ou gaúchas. Formada basicamente de gente pacata, onde todos se conheciam, Gorazde foi tomada de assalto pela guerra.

De maioria muçulmana, se tornou um alvo da limpeza étnica promovida pelo líder sérvio Slobodam Milosevic. E as poucas centenas de quilômetros que a separam da capital Saravejo a condenaram ao isolamento.

Sem apoio militar, contou com a força de seus moradores para resistir a um cerco tão longo.

Uma história de crianças que comiam às mesas umas das outras e, quando adultas, cometeram atrocidades inimagináveis sob a égide da irracionalidade. Um relato contundente sobre a necessidade de se levantar todas as manhãs sem saber ao certo como se chegaria ao final do dia. Um retrato de pessoas comuns, com hábitos comuns e que de uma hora para outra viram a realidade se contorcer sob seus pés.

Uma história de guerra contada de uma maneira absolutamente honesta.

Joe Sacco é um dos herdeiros dos quadrinhos underground. E soube aproveitar muito bem isso politicamente. Não se contentou em desmoralizar instituições ou costumes e sim expôs – com rara habilidade – os contrastes próprios de uma situação onde todas as leis do bom senso foram jogadas por terra. Onde uma vida humana era tão valorizada quanto um par de meias sujas.

Da impotência da ONU até os jogos políticos decidindo o destino daquela cidade, nada escapa da narrativa ferina de Sacco.

Gorazde não é um gibi de guerra onde um imponente Sargento Rock vem libertar os pobres cidadãos indefesos do julgo do opressor. Mas sim um gibi onde mães morrem protegendo filhos que morrerão logo depois, onde famílias separadas nunca mais se encontrarão.

Gorazde é um gibi de pessoas comuns chorando sobre túmulos anônimos.

Aprendi mais sobre o conflito nos Balcãs lendo Gorazde do que em todos os documentários sobre o tema. A narrativa gráfica imprimiu àquela guerra uma proximidade muito mais eficaz do que a imagem em movimento. É impossível ler o gibi e não sentir uma desoladora desesperança.

Do episódio no metrô até a sangrenta guerra existe uma distância incalculável. Mas Gorazde nos faz reflitir até que ponto pode chegar a imbecilidade e crueldade humanas quando o preconceito e o ódio são livremente incentivados.

Num país onde a segurança pública é uma piada de mau gosto, onde grassa a corrupção em todas as esferas do poder e as classes sociais menos favorecidas são cada vez mais violentadas em seus direitos civis, Gorazde é um alerta perturbador.

 

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Para saber mais: Crimes de guerra num documentário em Quadrinhos, no Mais Quadrinhos, de Wellington Srbek.